1964, O GOLPE


Diante dos inúmeros relatos sobre o Golpe Militar que infelicitou o país em 1964, um texto merece uma atenção redobrada: o do jornalista Flávio Tavares, testemunho ocular dos tempos que antecederam o pisar ditatorial dos coturnos e botas, com a participação reacionária de inúmeros civis e um bocado de mulheres que se sentiam com Deus, pela Família e a favor da Liberdade, inclusive com o apoio incondicional de muitas lideranças religiosas, a exceção ficando para uns poucos mais conscientes das tempestades que se avizinhavam.

O livro, de título acima, edição L&PM, 2014, aberto com um pensar de Bertolt Brecht – “A verdade é filha do tempo, não da autoridade” –, prima por uma análise circunstanciada desde a chegada, em 1961, do vice-presidente João Goulart a Porto Alegre, vindo da China, quando o Movimento da Legalidade, liderado por Leonel Brizola, impediu o golpe militar que ali nasceria, eclodindo depois em 1º de abril de 1964, com a sublevação do general Olympio Mourão, em Minas Gerais.

Para quem não se recorda, o jornalista Flávio Tavares, de nome completo Flávio Aristides Freitas Hailliot Tavares, nascido em Lajeado, RS, em 1934, ex-militante da esquerda partidária da luta armada, foi um dos presos políticos trocados pela embaixador norte-americano Charles Elbrick. Na juventude, segundo dados extraídos da Internet, foi aluno de colégio marista e ligado à Ação Católica. Aos 20 anos, foi eleito presidente da União Estadual dos Estudantes do Rio Grande do Sul. Formou-se em Direito, mas jamais atuou como advogado, trabalhando desde cedo na área de jornalismo, como comentarista político do jornal Última Hora, de Samuel Wainer, quando cobriu eventos importantes, como a Conferência da Organização dos Estados Americanos, em Punta del Leste, Uruguai, 1961, lá conhecendo Ernesto Che Guevara, delegado de Cuba.

Flávio Tavares foi um dos fundadores da Universidade de Brasília, sendo preso pela vez primeira logo após o golpe militar de 1964. Posteriormente, entre 1967 e 1969, foi novamente preso, acusado de ação armada para libertar presos políticos da Penitenciária Lemos de Brito, Rio de Janeiro, onde tomou conhecimento da existência de torturas crudelíssimas.

Em setembro de 1969 foi enviado para o exílio, no México, no grupo de prisioneiros trocados pelo embaixador Elbrick, sequestrado por integrantes das organizações clandestinas Dissidência Comunista da Guanabara e da Ação Libertadora Nacional, lá trabalhando num jornal pertencente a uma cooperativa de trabalhadores. Também escreveu, quando vivia em Buenos Aires, para o jornal O Estado de São Paulo, sob pseudônimo Júlio Delgado. Atualmente, o jornalista Flávio Tavares vive e trabalha em Búzios. É professor aposentado da UnB e articulista dominical do jornal Zero Hora.

O livro 1964: o Golpe é uma excepcional análise dos tempos preparatórios que antecederam a derrubada do presidente João Goulart do poder. Nela, é plenamente ratificada o que disse Arievlis Patraz, poeta afegã: “Na história, como na vida, a doença surge bem antes do sintoma. Tudo começa antes de ter começado”. E a doença começou desde 1961, 25 de agosto, com a renúncia de Jânio Quadros, quando a conspiração principiou a ser cuidadosamente organizada por militares, empresários, latifundiários, diplomatas, políticos, jornalistas e publicitários, bispos, padres e beatas, num trabalho que durou dois anos e seis meses. E que foi além fronteiras e consumiu milhões de dólares em planejamento, propaganda, reuniões secretas e ardis públicos. Segundo Flávio Tavares, “um fato aparentemente trivial marca o início de tudo. Após a posse de Jango, o coronel Golbery do Couto e Silva passa voluntariamente para a reserva. Nasceu em 1911, acaba de completar 50 anos e é o teórico pensante da direita liberal militar, que domina o pensamento da Escola Superior de Guerra, versão brasileira do War College dos Estados Unidos”. O coronel Golbery era considerado “o intelectual”, ao qual a direita militar apelava sempre, tendo sido, já em 1952, o redator do “explosivo manifesto em que 84 coronéis protestaram contra a duplicação do valor do salário mínimo, destronando João Goulart do ministério do Trabalho”.

Na reserva, Golbery assume a presidência e principia a organizar o IPÊS – Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais, segundo Tavares “na aparência um inocente organismo dedicado à investigação sociológica, mas, em verdade, um corpo fechado, ao estilo de moderna sociedade secreta com vida pública”. No IPÊS, Golbery seria o ideólogo, o empresário Glycon de Paiva o mentor financeiro e o então delegado de polícia Rubem Fonseca, hoje escritor, o executivo-mor. Revela Tavares: “Chefe de um seleto grupo de intelectuais mercenários, contratados com salários nababescos, cinco ou seis vezes superiores às mais altas remunerações dos grandes jornais do Rio e São Paulo, Rubem Fonseca torna-se a figura-chave pela qual o IPÊS estabelece a ponte entre os conspiradores e a opinião pública”. O IPÊS ocupava treze salões do 27º piso do imenso Edifício Avenida Central, na Avenida Rio Branco. E Tavares revela que “o IPÊS de Golbery era o lado culto e oculto da conspiração”.

Quem desejar obter detalhes sobre a estratégia chamada “paranoia do medo” e o papel desempenhado por inúmeros conspiradores, inclusive John Kennedy, o faniquiteiro embaixador Lincoln Gordon, e o presidente Juscelino Kubitschek, que daria seu voto no Congresso para “legalizar” Castelo Branco, percebendo mais tarde seu erro de avaliação. Além do coronel Vernon Anthony Walters, um homenzarrão de quase dois metros, recebido entusiasticamente no Galeão, em outubro de 1962, por treze generais brasileiros, como se fosse o salvador da pátria.

O livro traz detalhes elucidativos, principalmente sobre uma famosa reunião no Salão Oval da Casa Branca, sobre o pavor causado por um processo estruturado por um então jovem desconhecido professor Paulo Freire, que alfabetizava dando consciência ao alfabetizado, método aplicado num muito pobre município do Rio Grande do Norte, Angicos. Um método alfabetizador que ampliou a conspiração, acelerada com o assassinato do presidente Kennedy, em 23 de novembro de 1963, em Dallas, Texas, que “reacende ocultos desequilíbrios mentais, ressentimentos materiais, iras ou ódios armazenados no inconsciente dos que foram educados e treinados para matar”. Assumindo a Casa Branca o vice-presidente Lyndon Johnson e, com ele, as garras dos “falcões” da Guerra Fria, que assumiram a primazia em todas as ações dos EUA. A ponto de, na noite de 13 de março, quando da realização do “comício das reformas”, na Avenida Presidente Vargas, o adido militar dos Estados Unidos Vernon Anthony Walters assistia o evento pela televisão na residência do chefe do Estado-Maior do Exército Brasileiro Castello Branco, no Rio de Janeiro.

Um livro muito bem escrito por jornalista que viveu bem próximo dos acontecimentos, sabendo captar, posteriormente, depoimentos preciosos, inclusive sobre as fanfarronadas adolescentes travadas no Congresso Nacional, os lados contrários “se emulando na fantasia da mentira”.

(Publicada em 21.04.2014, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)