1612 – HISTÓRIA PARA DOIS
Numa ilhota do rio São Francisco, os sentimentos se encontravam devidamente cadastrados, com residências fixas e bem sabidas. A Alegria, a Tristeza, a Sabedoria e o Amor, entre tantos outros. As desavenças eram consideradas coisas de rotina, mas todos compartilhavam haveres e deveres, embora uns fossem bem menos solidários que outros, mais chegados aos haveres que aos próprios deveres.
Num princípio de invernada, uma notícia tomou conta das rodas de papo: o inevitável afundamento da ilha, a data fatal acontecendo nos próximos dias, sem qualquer aviso prévio.
Do me-disseram até o arrumar apressado de malas e bagulhos, teréns e bichos de estimação, tudo não durou mais que hora e meia, tempo suficiente para a zarpada de barcos e canoas apinhados de quase todos os sentimentos. A causa do quase foi o Amor, que desejou permanecer mais um tempinho, desapercebendo-se da submersão da ilhota que já principiava.
De repente, o Amor precisou de auxílio. E solicitou ajuda à Ganância, que já saltitava em seu lindo e decorado veleiro. A resposta veio de imediato: “Lamento, querido Amor, mas carrego muito ouro, prata e jóias, não mais havendo lugar para você e os seus”.
Um novo pedido, já mais angustioso, foi dirigido à Vaidade, que também se fazia ao largo com uma embarcação repleta de lantejoulas multicoloridas. E uma nova desculpa não se fez esperar: “Não te poderei ajudar, caríssimo Amor, pois estás molhado e inevitavelmente sujarias o convés do meu barco recentemente adquirido a um doleiro latino”.
A Tristeza também respondeu negativamente à súplica desesperada do Amor: “Desculpe-me, Amor, mas estou tão acabrunhada que prefiro seguir viagem sem qualquer companhia”. E a Alegria também fez ouvidos de mercador, inebriada que estava com a sua ida para outras pousadas mais deslumbrantes.
Quase em pânico, sentindo chegar seu momento final, o Amor foi acometido de um choro convulsivo, só estancado por uma voz bem tranquila que o fez revestir-se de esperança redentora: “Venha, Amor, eu o levarei até lugar seguro”. Um velhinho de olhos azuis, cabelos de algodão, mãos calejadas e vestes semirrotas, envelhecido mas de cabeça erguida e sempre voltada para adiante de si, salvava o Amor, retirando-o de uma situação quase irreversível.
Já em terra firme, os possuídos nos devidos lugares, comida à disposição, ânimos refeitos, o Amor percebeu que não sabia sequer o nome do seu herói. Encabulado diante da gafe cometida, perguntou à vizinha Sabedoria a identidade daquele velhinho que parecia já ter percorrido uma muito longa estrada. E somente então percebeu que era o Tempo que lhe tinha arrancado das garras da destruição.
E aí, mais que de repente, compreendeu que somente o Tempo é capaz de entender o Amor, seja ele de qualquer espécie. Somente o Tempo apaga as escaramuças do cotidiano, releva tricas e futricas, destrona vaidades, desestimula ganâncias, amplifica a sabedoria e desnuda as empáfias e insensatezes dos incultos emergentes. Fazendo sempre renascer o novo no velho.
E o Amor, emocionado, agradeceu a Deus por um Tempo que nunca desestimula as reconstruções desejadas pelos que acreditam em amanhãs a dois bem vividos, com ou sem carimbo cartorial. As distâncias etárias pouco importando, desde que assumidas as diferenças comportamentais e bem assimilados aspirações e temores.
PS. Para Rejane Nascimento de Assis, que nunca me decepcionou, sempre incentivando o meu caminhar.
Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social