1522 – SOBRE UM PROFETA DA LIBERTAÇÃO


A visita do Papa Francisco ao Santuário de Fátima, Portugal, foi embasada por um questionamento emblemático: Como ressignificar a Mensagem do Senhor Jesus para o mundo contemporâneo, dado o distanciamento crescente entre as evangelizações eclesiásticas e as lições emitidas pelo Homão da Galileia, nosso muito amado Irmão Libertador?

De parabéns múltiplos está a Editora Paulus, pela edição recente da versão definitiva do testamento teológico-espiritual do padre belga José Comblin (1923-2011), um dos mais respeitados teólogos contemporâneos, chegado em 1958 ao Brasil, tendo sido professor do ITER – Instituto de Teologia do Recife, expulso do Brasil pela ditadura militar em 1972, anistiado em 1986, falecendo em Simões Filho, Bahia, onde nos últimos anos se dedicava na elaboração conclusiva dos seus pensamentos sobre o Espírito Santo e o projeto de Jesus.

O livro agora editado se intitula O ESPÍRITO SANTO E A TRADIÇÃO DE JESUS, José Comblin, São Paulo, Paulus, 2023, 348 p. Trata-se de uma edição póstuma, organizada por Ermínio Canova, possuindo uma Apresentação dele e do Alder Júlio Ferreira Calado, integrante do Grupo Kairós e coorganizador das Semanas Teológicas Pe. José Comblin, acontecidas anualmente há mais de uma década.

Na Introdução do livro, o Pe. Comblin explicita seus propósitos: “Como todos os teólogos da minha geração, a minha preocupação foi como traduzir o Evangelho para os nossos contemporâneos de tal modo que o possam compreender. Evidentemente, são inumeráveis os que se afastaram da Igreja porque esta não foi capaz de traduzir a mensagem numa linguagem compreensível. Não creio que esta geração à qual pertenço possa achar a solução. Pode ser que ainda a Igreja tenha de esperar várias gerações. Pois a instituição permanece inconsciente; ou, é consciente, acha que a solução está na repetição do mesmo com mais entusiasmo. Mas o problema não é a maneira de dizer. O problema é de fundo. O que se diz não se entende por que é dito numa cultura que já é minoritária e que a maioria dos contemporâneos não entendem, salvo os historiadores. Se o problema é sumamente difícil, isso não nos dispensa o dever de buscar.”

O testamento teológico-espiritual do pe. Comblin se explicita em quatro partes: a. As origens da tradição; b. A tradição evangélica; c. A tradição religiosa; d. Na aurora do século XXI.

Uma contínua preocupação do padre José Comblin: transmitir uma teologia mais comprometida com a realidade, em particular com a realidade do mundo popular latino-americano. Para tanto, era necessário ter contato com o mundo real. E ele sempre procurou esse contato até nos detalhes da vida cotidiana.

Comblin repetia sempre: “Nossa aliada é a realidade, e quem não vê a realidade não vê o que é a humanidade. Fica nas palavras e nos discursos, porém, não pode criar nada. Não há receita, mas com a cabeça e coração descobrirão o que deve ser feito.”

O notável missionário belga chegou a ser considerado um dos teólogos conflitivos que exercia uma má influência nos jovens das comunidades periféricas mais pobres. Em seus primeiros anos de Brasil, primava por uma fina ironia, ao expressar suas percepções e análises. Talvez, inconscientemente, era uma forma de superar a sua timidez, embora para os seus interlocutores, isso incomodava muito. Claro que, pouco a pouco, foi domesticando a sua ironia, que no crepúsculo de sua vida se torna menos instigante. Como resumiu um amigo seu, o bispo chileno Dom Jorge Hourton: “Padre Comblin escreveu muito, mas seus escritos são mais temidos do que lidos.”

Quem o conhecia mais de perto, sabia que suas ironias não procediam de um ânimo amargo ou rancoroso, mas sim de uma picardia de menino travesso e impenitentemente crítico, sempre muito lúcido. Porém, há bem mais: elas procediam de uma paixão pelo Evangelho e por uma convicção pessoal muito intensa, de índole eclesiológica. O teólogo Comblin pensava que o estilo autoritário e legalista no catolicismo provocava muito dano e seria a maior causa de um desvio que o punha em conflito com os tempos modernos. Um desvio que afoga a inspiração evangélica, deturpando ministérios e serviços, reduzindo os leigos a uma mera submissão passiva, desanimando as forças de renovação, privilegiando o status quo em detrimento do carisma missionário e rejeitando a opção preferencial pelos pobres.

Estou seguro de que o Papa Francisco já leu, compreendeu e meditou bem o testamento teológico-espiritual do Padre José Comblin, um efetivo despertador eclesiástico de primeiríssima qualidade.


Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social