1502 – RELIGIÃO, TERROR E RAZÃO


A leitura do trecho a seguir – “Mães foram trespassadas por espadas diante de seus filhos. Jovens foram desnudadas e estupradas em plena luz do dia, e depois incendiadas. A barriga de uma mulher grávida foi aberta a faca, e o feto levantado para o céu na ponta de uma espada e depois atirado para uma das fogueiras que ardiam por toda a cidade” – dá-nos a impressão de um fato acontecido há milhares de anos, quando tribos se digladiavam. Mas o espanto se decuplica quando tomamos ciência que a descrição acima relatada aconteceu em 2002, em pleno século XXI, nos combates travados entre hindus e muçulmanos. Registrado, com outras narrativas inimagináveis, no New York Times de 27 de julho de 2002, em artigo intitulado Tumultos religiosos agigantam-se sobre a política indiana, de C. W. Dugger, citado no livro A MORTE DA FÉ – RELIGIÃO, TERROR E O FUTURO DA RAZÃO, de Sam Harris, escritor norte-americano, filho de mãe judia e pai quaker, ganhador em 2005 do PEN/Martha Albrand Award pelo livro agora editado, no Brasil, pela Companhia das Letras.
O livro do Sam Harris deveria tornar-se leitura obrigatória para autoridades leigas e religiosas do mundo inteiro, quando algumas crenças estão nos levando a uma matança generalizada de fundo religioso. Como ainda acontece entre judeus e muçulmanos na Palestina, sérvios ortodoxos e croatas católicos nos Balcãs, protestantes e católicos na Irlanda, muçulmanos e hindus na Cachemira, muçulmanos e cristãos no Sudão, cingaleses budistas e minoria tâmil no Sri Lanka, russos ortodoxos e chechenos muçulmanos no Cáucaso, onde a religião tem sido o fator explícito da morte de um sem-número de seres humanos desde a década de 1990.
A noção de tolerância é radicalmente atacada por Harris, em seu livro, defensor de uma secularização societária que está a exigir paradigmas menos irracionais e hipócritas, nunca dinossáuricos, nos ensinamentos religiosos contidos nos livros sagrados de todas as crenças religiosas, inclusive na Bíblia e no Corão, para citar os dois mais significativos para o mundo contemporâneo. Ele denuncia com o vigor de um não-ateu, a natureza intrinsecamente violenta e sectária das religiões dogmáticas, onde palavras como “Deus”, “pecado”, “paraíso”, “criação”, “purgatório”, entre tantas outras, necessitam ser melhores explicitadas para uma juventude que anda às voltas com um caminhar existencial espiritualizado quilômetros distanciado dos literalismos de todos os matizes, dogmáticos e pouco tolerantes.
Os argumentos de Sam Harris, incisivos e provocadores, devem ser classificados como extremamente fecundantes. Despertadores, anti-dominadores, capazes de proporcionar uma reflexão para os desovelhados de todas as denominações religiosas. A título de aperitivo, eis um trecho-cutucador: “Tudo que podemos dizer, como moderados religiosos, é que não gostamos do custo, em termos pessoais e sociais, que a adoção plena das Escrituras nos impõe. E essa não seria uma nova forma de fé, ou nem sequer uma nova espécie de exegese das Escrituras; é simplesmente uma capitulação a diversos interesses extremamente humanos que, em princípio, não têm nada a ver com Deus. A moderação religiosa é produto do conhecimento secular e da ignorância escritural – e ela não tem nenhum respaldo, em termos religiosos, para ser colocada lado a lado com o fundamentalismo”. E finaliza: “Se os dogmas centrais da fé não forem questionados – ou seja, que sabemos que existe um Deus, e sabemos o que Ele quer de nós – a moderação religiosa nada terá para nos tirar desse emaranhado”.
O livro do Sam Harris não se destina aos que ainda possuem uma “enxergância mentalmente ingênua”. Que ainda não desenvolveram uma criticidade religiosa, ainda que sejam portadores de um bocadão de neurônios.
(*) Texto publicado no Jornal do Commercio, Recife, em 23 de dezembro de 2009, cópia enviada ontem pelo Adalberto Arruda, colega economista da Turma 1966, da Universidade Católica de Pernambuco.


Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social