1493 – UTOPIAS PEREGRINAS
A Universidade Federal de Pernambuco, certa feita, deu mostra efetiva de ser uma instituição de ensino superior que sempre persegue uma excelência científica sem menosprezar a sua missão humanística. A edição, pela Editora Universitária, de UTOPIAS PEREGRINAS, do sempre lembrado e nunca esquecido Dom Hélder Câmara, sempre Arcebispo Metropolitano de Olinda e Recife, tornou-se prova cabal de como se pode respeitar a pluralidade ideacional de um contexto acadêmico sem resvalar para cerceamentos puristas nem populismos, tampouco sectários que tão somente deslustram mentes e corações e, a curtíssimo prazo, históricas caminhadas comunitárias sacrificiais libertadoras.
Sou sempre suspeito para falar dos trabalhos do arcebispo metropolitano de Olinda e Recife. Seu ideário, repleto de notáveis antecipações e proféticas advertências, pululam no meu interior de nordestino sempre eivado de muitas esperanças. Mas não gostaria, entretanto, de passar a oportunidade, através deste site, de encarecer aos civicamente desmotivados pelas irresponsabilidades sociais, econômicas e políticas recentes, onde alguns arrotavam coragem e se escafederam quando chamados a exercer uma escorreita corregedoria, uma leitura reflexiva de UTOPIAS PEREGRINAS, escritos de um ontem incrivelmente eivado de hojes, advertências bojadas de muita solidariedade concreta para com os desassistidos do mundo inteiro.
Uma comprovação da contemporaneidade dos escritos do Dom até os momentos contemporâneos, se efetiva quando da leitura de um documento elaborado pelo então presidente da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento, Javier Peres de Cuellar, ex-secretário geral das Nações Unidas, 1982-1992. Em seu documento sobre a questão, quatro pontos norteadores são aventados: 1. Torna-se indispensável um repensar do desenvolvimento mundial; 2. Urge reformular a própria noção de cultura; 3. O desenvolvimento dos povos não deve ficar restrito a simples aumentos dos recursos materiais; 4. Todo desenvolvimento econômico exige um suplemento de alma.
Para não ficar apenas no discurso, a ONU sempre baliza as suas estratégias mais urgentes nos seguintes princípios:
- Redução drástica dos gastos improdutivos, mormente os militares;
- Otimização dos gastos públicos;
- Estabelecimento de novas políticas de preços que integrem os custos não-econômicos, ambientais e culturais;
- Introdução de novas políticas fiscais e comerciais;
- Maiores recursos para o desenvolvimento do ser humano, aumentando-se as responsabilidades públicas nos setores Educação e Saúde.
A crise maior, nas últimas décadas, não é econômico-financeira. É de outra natureza. É uma crise de percepção. Poucos estão inquietos com uma desagregadora distribuição de renda mundial: até recentemente, 83% da Renda Mundial se encontravam nas mãos dos 20% mais ricos, sobrando apenas 1,4% para os 20% mais pobres. Estarrecedora estatística, quando se sabe que, em 1960, os 20% mais ricos abocanhavam 70%, aos 20% mais pobres cabendo 2,3%. Percentuais que sempre anunciam tragédias históricas de grande monta
No caso brasileiro, urge um imediato programa de reestruturação nacional, o regional sendo parte integrante e integradora. Travando-se o bom combate diante das expressividades comodistas e politizações impotentes. Buscando-se as causas de uma incomensurável descrença no poder político, fruto de uma inércia assustadora, muito bem paga, salvo as exceções já de pleno conhecimento público. Eliminando-se, por uma efetiva ação dos consequentes, os sinais emergentes de novos barbarismos, sequelas das ampliações econômico-sociais entre os que têm muito e os que nada possuem, estes em crescimento sempre constatado.
Os objetivos serão alcançados mais duradouramente se a receita contiver uma maciça dose de autenticidade, uma mancheia de posturas éticas, as estratégias sempre estabelecidas com as cartas na mesa. E uma vontade gigante de defenestrar pensares obsoletos, para abarcar uma contemporaneidade ideacional muito arretada de ótima, sempre evolucionária.
Para os antigos e novos helderistas, um recente livro editado pela Companhia Editora de Pernambuco chegou num momento histórico mais que oportuno: NÃO DEIXE CAIR A PROFECIA: A HERANÇA DE DOM HÉLDER CÂMARA PARA A HUMANIDADE DO SÉCULO XXI, Marcelo Barros, Recife PE, CEPE, 2022, 201 p. O autor é um religioso beneditino e teólogo de base, autor de mais de 60 livros traduzidos inclusive para outros idiomas.
Sejamos plenamente capazes, sob as bênçãos do Homão da Galileia, nosso Irmão Libertador, de, sempre evangelicamente, libertar as igrejas dos seus modelos tridentinos de Cristandade, hoje integralmente defasados numa pós-modernidade que principia mais intensamente a reclamar por um novo modelo de vida comunitária, onde todos possam ter vida e vida em abundância, segundo Jo 10,10.
Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social