1488 – APELOS À CONSCIÊNCIA 2023


Nunca escondi de ninguém as minhas quatro grandes admirações terrestres não familiares, os quatro mosqueteiros que alicerçaram os meus ainda sempre precários níveis de cidadania: Dom Hélder Câmara, Mahatma Gandhi, Paulo Freire e Martin Luther King, este Prêmio Nobel da Paz 1964. O primeiro, um integralmente diferente da Cúria Romana; o segundo, um filho de ricos que se tornou um gigante da libertação da Índia; o terceiro, um educador que mundialmente favoreceu a migração de muitos de uma transitividade ingênua para uma transitividade crítica, alavancando saberes e responsabilidades sociais; e o quarto, também adepto de uma não violência ativa, tornado uma das maiores vozes proféticas do século XX, a partir de sua militância, como pastor batista de uma igreja de Montgomery, no Alabama, Estados Unidos, na segunda metade dos anos 50 e metade primeira da década seguinte, quando foi estupidamente assassinado.

Os meus ídolos possuíam uma característica comum: a não violência ativa como recurso único para alavancar consciências, ampliar enxergâncias, reduzindo egoísmos e auto-devoramentos através de indispensáveis mutações históricas, pacíficas se possíveis. Todos eles sabiam fazer acontecer, sem postarem-se de donos da verdade, percebendo que as vitórias nunca emergem de imediato, tal e qual as sementes jogadas ao vento, algumas se nulificando, outras tornadas sem potência fertilizadora, as eficazes abraçando os sinais aritméticos de “mais” e de “multiplicação”, pouco se lixando para ganhos e perdas conjunturais, a utopia à frente sempre a exigir novas iniciativas, coragem e fé.

Das leituras dos escritos dos quatro notáveis, do Luther King conhecia apenas o seu famoso Eu Tenho Um Sonho, pronunciado em 23 de agosto de 1963, em Washington, D.C., por ocasião da Marcha por Trabalho e Liberdade, poucos meses antes do assassinato de John Kennedy, em Dallas. Minha deficiência foi agora em parte superada pela publicação, pela Jorge Zahar Editor, de Um Apelo à Consciência – Os Melhores Discursos de Martin Luther King, editado por Clayborn Carson e Kris Shepard.

Cada pronunciamento de King foi devidamente apresentado por uma personalidade, o primeiro sendo da autoria de Rosa Louise Parks, aquela militante negra já tornada eternidade, que em primeiro de dezembro de 1955 tinha-se recusado a dar seu assento no ônibus a um branquelo racista, sendo presa, ensejando a criação da Associação pelo Progresso de Montgomery, quatro dias depois, quando Martin Luther King foi aclamado presidente e porta-voz da entidade.

O livro deveria ser lido por vários extratos da nossa sociedade, onde uma “capacidade de maravilhamento” alienada, que se imagina isenta de atropelamentos históricos, ainda não percebeu a gravidade da denúncia feita por Roland Corbisier, um dos talentos pátrios: “a periferia está exportando o seu ser e importando o seu não-ser”. E ainda pelos desvairados de todos os naipes, que, se souberem compreender com isenção de ânimos, saberão perceber que, usando aqui as palavras de Luther King, “não é hora de se comprometer com o luxo do comedimento ou de tomar o tranquilizante do gradualismo. Agora é hora de concretizar as promessas da democracia. Agora é hora de deixar o vale sombrio e desolado da segregação pelo caminho ensolarado da justiça racial. Agora é hora de conduzir a nossa nação da areia movediça da injustiça racial para a sólida rocha da fraternidade. Agora é hora de tornar a justiça uma realidade para todos os filhos de Deus”.

Num instante histórico de transição que vivemos, Luther King parecia querer advertir todos os brasileiros, a partir de janeiro de 2023: “não basta falar do amor. O amor é um dos pilares da fé cristã, mas há uma outra face chamada justiça. Justiça é corrigir com amor aquilo que se rebela contra o amor.

Para os que estão de férias, é recomendável uns instantes de meditação, para ratificar ou retificar comportamentos, na contemplação de novos horizontes. Sempre atento para o revelado pelo salmista: “Por que temer, nos dias infelizes, a malícia dos espertalhões que me cercam, e os que contam com sua fortuna e se vangloriam da sua riqueza?” (Salmo 49). E também sabendo redimensionar seus níveis de cidadania, evitando sutis envenenamentos consumistas, desatualizações culturais e desastrosos esmorecimentos espirituais, que comprometem as três pilastras de um efetivo viver: a dignidade, a integridade e a autorrealização. Suportes indispensáveis para quem postula ampliar os três paradigmas de uma caminhada cristã: a , a esperança e a caridade.

Oportuno também ressaltar, nas festividades que antecedem 2023, o que disse Albert Schweitzer, ao receber o Prêmio Mundial da Paz, em Oslo, 1952: “O homem tornou-se um super-homem…Mas super-homem com poderes sobre-humanos que não atingiu o nível de razão super-humana…. Impõe-se sacudir nossa consciência ao fato de que nos tornamos tanto mais desumanos quanto mais nos convertemos em super-homens”. Palavras complementadas pela constatação feita por Erich Fromm: “Somos uma sociedade de pessoas notoriamente infelizes: solitários, ansiosos, deprimidos, destrutivos, dependentes — pessoas que ficam alegres quando matamos o tempo que tão duramente tentamos poupar”. Dois pensares que poderão auxiliar muitos na descoberta de um outro Eu, mais humanizado, mais ecológico, mais entrosado solidariamente nos novos cenários empreendedores mercadologicamente dinâmicos, mais familial comunitariamente.

Muitos, após seus períodos de férias, perceberão que “atividade é uma conduta intencional socialmente reconhecida, que resulta em mudanças correspondentes empre úteis”. E que ter maior poder cerebral será, sem dúvida alguma, o desafio dos próximos anos, uma nova fronteira, com diferenciadas formas de convivialidade. Sempre usando o tempo como ferramenta, jamais como um divã, como costumava alertar o presidente John Kennedy.

Recomendaria aos que ainda se encontram de papo para o ro ar, sem desejar integrar-se na construção de um novo mundo, identificar um bom mentor: leituras, papos, Internet, meditação transcendental, ioga, trabalho comunitário, entre outros notáveis. Com o cuidado para não se deixar escravizar por correntes, visões, tarôs e tarados. Percebendo que o futuro chega cada vez mais rapidamente. E que todo futuro chegante, será logo ultrapassado, numa velocidade alucinante.

Após as férias, atenção para não cuidar das coisas certas nas horas erradas, o vice-versa também sendo desagradável. Não esquecendo que a raça humana não se locomove em bandos, nem jamais duvidando que  uma competência seja bem mais rentável que um mero diploma universitário.

Permanecer sempre no centro do seu ser, ainda é a melhor maneira de se aprender um pouquinho mais. E de apreender derredores, fatos e cenários. Vacinando-se contra a confiança em demasia, a especialização individual excessiva, a rotinização do convívio e a cegueira estrutural.

E sonhar sempre. Sempre com os pés bem plantados e o coração apaixonado, posto que a lição de T.S. Eliot continua contemporânea: “Somente quem se arrisca a ir longe, fica sabendo até onde pode chegar”.

Em 2023, as emoções de voar que se principiam com as experiências sentidas pelas ameaças do cair, eis uma lição que muitos ajuntadores de dinheiro ainda não perceberam, preferindo o ti-ti-ti das futilidades, sempre rejeitando a travessia “de lagarta a borboleta”.


Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social