1479 – AMPLIANDO BINOCULIZAÇÕES


Através de um fraternal amigo de bairro, travei conhecimento das façanhas de Mullá Nasrudin, um sábio sufi (aquele que está no mundo, mas não é dele, liberto da ambição, da cobiça, do orgulho intelectual, da cega obediência aos costumes e despido de respeitoso temor pelas pessoas de posição mais destacada), cujas histórias atravessam fronteiras, favorecendo a multiplicação de novas atitudes críticas diante da Vida, principalmente dessa vida severina que asfixia cruelmente uma parte substancial do mundo subdesenvolvido, quando até intrépidos defensores do bom uso dos gastos públicos são flagrados com a mão na botija, numa impunidade gritante. A merecerem muitos anos de cadeia braba. 

Mullá Nasrudin nasceu e cresceu numa pequena localidade turca, filho de respeitado guardião de santuário de um grande mestre. Um dia, resolvendo conhecer outros mundos, visitou o Egito, comeu da banda podre nos desertos da Arábia e atravessou as cordilheiras de Kashmir, quando seu companheiro de viagem, um já envelhecido jumento, veio a falecer, não superando as privações até então suportadas por radical amizade. 

Profundamente triste com o desaparecimento do companheiro de uma jornada que já ultrapassava muitos anos, sobre a sepultura dele permaneceu em longa e silenciosa meditação, chorando com frequência acima da média e despertando a curiosidade dos demais viandantes da rota das montanhas, que se dirigiam aos santuários do Turquestão.

Passados alguns meses, ainda mais esquálido, alimentando-se de pequenas doações, ínfimas se comparadas às atuais magérrimas cestas básicas, Nasrudin foi abordado por um homem rico, que ordenou fosse construído no local um imponente santuário e ao derredor plantadas sementes várias, cujos frutos destinavam-se à manutenção do ambiente tornado agora sagrado.

Propagada a fama do Santuário, o fato ancorou-se nos ouvidos do pai de Nasrudin, que para lá peregrinou, indagando ao filho o que havia sucedido. Contados os acontecidos, o perplexo velho, levantando os olhos para os céus, maravilhado, exclamou:

– Saiba, ó filho meu, que o santuário no qual cresceste e que abandonaste foi erguido exatamente da mesma maneira, através de uma cadeia similar de eventos, quando meu próprio jumento, assim como este teu, morreu há uns quarenta anos.

O Mullá Nasrudin nasceu e viveu por volta do século XIII.  E sua trajetória, com suas histórias, serve até hoje para demonstrar, aos mullás sem acentos de uma contemporaneidade ainda muito pouco solidária, que a seriedade do homem do Pequeno Príncipe não se encontra atrelada à sabedoria e que o pior aprendizado é aquele advindo de rostos sisudos e olhares proféticos, o ridicularizado homem sério do livro notável de Antoine de Saint-Exupéry.

Nas últimas eleições, o caráter paradoxal da vida manifestou-se e as formas condicionadas de pensar emergiram com notável nitidez. Olhares rabosos de uns bostíferos para os que não comungavam da mesma candidatura, e até mesmo irados cartazes ofensivos explicitavam hábitos e costumes pouco condizentes com uma sadia convivialidade, em que os que pensam que sabem estão, muitas vezes, quilômetros distanciados, para trás logicamente, dos que já se despiram de ocidentais padrões globolizantes impostos, cientes que são de uma verdade muito verdadeira, descoberta por Nasrudin, há mais de setecentos anos: sob alguns esplendorosos monumentos estão sepultados apenas simples jumentos.

Inúmeros estão se comportando como aquele abestado que estava conversando com um vizinho, quando anoiteceu. E o vizinho advertiu: 

– Acenda uma vela, pois já está escuro. Tem uma vela bem ali à sua esquerda. 

No que retrucou o abilolado: 

– Como é que vou distinguir a minha esquerda da minha direira no escuro, amigo?

Saibamos, depois das eleições, sejam quais forem os resultados, assimilar concretamente uma notável reflexão do pernambucano Joaquim Nabuco, o notável abolicionista: “Conserve-se o coração afastado do espírito partidário, a fim de que as amizades não variem com a política. Mesmo confundir política com religião já é intolerância.” 

Quando surgirão novos Nabucos abolicionistas brasileiros?

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Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social