1478 – PARA ENXERGAR O MOMENTO HISTÓRICO


As quatro pequenas histórias, abaixo, merecem uma reflexão de alguns instantes, nunca individual. Elas retratam circunstâncias diferenciadas, onde são confrontados pensares de ontens e consciências de hoje.

  1. Um pequeno agricultor adquiriu, depois de um esforço concentrado de vários anos, um terreno cheio de mato e pedregulho. Com um esforço incomum, transformou o terreno árido em uma bela lavoura. Um dia, recebendo a visita de um compadre, este exclamou:

– Amigo, como Deus foi bom para com. Você e Deus produziram uma bela lavoura!!

– Verdade, respondeu o agricultor. – Mas você precisava ver o tamanho do matagal no tempo em que Deus cuidava sozinho desse terreno!!

  1. Num matar-saudade acompanhado de muita água-de-coco, um professor narrava a contratação dos serviços de uma profissional do lar. Entrevistando uma delas e solicitando as suas pretensões salariais, ouviu singular resposta:

– Depende. Se for para trabalhar com penso é mais caro. Se for para trabalhar sem penso é mais barato.

Diante do atordoamento causado, a explicação convincente:

– Se o senhor quiser que eu pense como administrar o dia da sua casa é um preço. Mas se o senhor quiser apenas que eu cumpra as suas ordens, o preço será menor.

  1. Um endinheirado nordestino, travestido de empreendedor XXI, resolveu observar o milagre japonês no seu endereço de origem, no outro lado do mundo. Comprou passagem ida-e-volta, conseguiu a companhia de um alguém que dominava inglês e partiu lampeiro que só para conhecer o berço do sol. Após os desembaraços alfandegários, anunciou seu maior desejo: conhecer, no Japão, um Mestre Zen, desses tidos e havidos como um danado-de-bom na sabedoria. E um Mestre Zen, posto à sua inteira disposição, foi uma cortesia nipônica de primeira hora.

Apresentado ao Mestre Zen, as inevitáveis perguntas abobadas aconteceram, as argumentações lógicas   menosprezadas. De repente, o Mestre Zen, já com o estômago bem embrulhado, resolveu tomar a iniciativa:

– Você sabe muitas coisas, não sabe?

– Percebe-se, Mestre ?

Sorriso sibilino, todo já análise feita, o Mestre retornou:

– Estou disposto a lhe testar, o amigo concorda? 

Peito estufado, sem pestanejar, externou um – Como não, caríssimo Mestre enxeridíssimo e sem qualquer reticência. E com um acréscimo atrevido:Pode perguntar o que quiser.

O diálogo foi mais ou menos assim, como me contaram:

– O amigo sabe onde está neste momento?

– Claro que sei, Mestre. Estamos num lindo bosque.

– E onde está este bosque?

– Ora, caro Mestre, no Japão.

– E onde está o Japão?

– No nosso planeta Terra, Mestre, com certeza.

– E onde está o nosso planeta?

– Ora, Mestre… No Universo!

– E onde está o Universo, caríssimo brasileiro?

O embatucamento foi para ninguém botar defeito. O suor principiava a correr, sovaco abaixo. Mas a resposta não tardou:

– Na verdade, caríssimo Mestre, eu realmente não sei.

A ponderação severa, a penúltima, então aconteceu:

– Veja só, o amigo nem sabe onde está e acha que já sabe muito. O amigo ainda tem muito que aprender.

Danado de raiva, o “notável” rebateu sem mais as conveniências de um bom relacionamento:

– Qualé, Mestre, até mesmo o senhor não sabe a resposta correta, né não?

O xeque-mate até hoje não se desinstalou da cuca do inculto endinheirado:

– Pois esta é a nossa diferença, amigo caríssimo. Minha ignorância é baseada em meu entendimento, enquanto o seu entendimento é baseado em sua ignorância. Sou um tolo de bom humor, você é um sério idiota.

  1. Numa excursão ecológica, um jovem universitário subiu ao alto de uma árvore frondosa, nele encontrando um ninho de águia. Retirando de lá um ovo, alojou-o em casa sob uma galinha que já chocava uma meia dúzia de outros tantos. O resultado foi o nascimento de um filhote de águia no meio dos pintainhos. Bem crescida, a aguiazinha não sabia sequer por que não integrava a categoria. Contentou-se com a sua sina, muito embora, vez por outra, ânsias interiores provocassem o seu interior, como que a dizer “devo ser algo mais que uma simples galinha.” A falsa galinha jamais tomou qualquer outra iniciativa, até observar, numa bela manhã, uma águia sobrevoando o galinheiro em missão caçadora. E a convicção aflorou imediatamente:Não sou galinha. Não nasci para viver em galinheiro. Meu destino é o céu, ainda que não seja de brigadeiro. E alçou vôo, deslumbrada, imaginando-se muito águia, embora conservando toda a formação interior. Lamentavelmente, tornou-se águia sem jamais ter superado uma mentalidade de galinha.

As historinhas acima apontam, nos pórticos da presente década, para uma crescente constatação entre os cristãos descidadanizados: o desprezo que eles nutrem por si mesmos, posto que emocionalmente são dependentes. E como todo dependente, são dotados de múltiplos preconceitos. São falsos moralistas, se posicionando com uma insegurança que mutila a criatividade, sempre se amesquinhando com não rara freqüência. E muitos ainda são fundamentalistas, imaginando que sua doutrina é a única verdadeira, todas as demais sendo falsas. Basta descobri-los um pouco para se perceber seus impulsos secundários, suas invejas, suas descabidas ambições, seus instintos perversos, a lei de Gerson sendo por eles a única aplicada, todo o restante não sendo merecedor de mínima atenção. Suas posturas mecanicistas de encarar a vida os tornam defensores de regimes autoritários, onde o trabalho, o amor, a solidariedade e o conhecimento não são forças determinantes da existência humana, tampouco essenciais na consolidação de uma paz universal.


Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social