1472 – UMA BÍBLIA NÃO RELIGIOSA
Não há termo mais apropriado para enfrentar as intempéries conjunturais provocadas pelas aceleradas mutações do cotidiano planetário que o utilizado por gente cidadanizada nas análises de conjuntura: simancolidade. Nos dicionários, o vocábulo ainda não se encontra registrado, muito embora ele já tenha significação bem definida: capacidade de se perceber inoportuno ou inconveniente; sinais despertadores de uma criticidade apta para detectar erros e enganos, grosserias ou apressamentos desnecessários; sentimento nobilíssimo de profunda autocrítica, favorecendo um redirecionamento mais condizente com procedimentos nunca nostálgicos ou saudosistas, tampouco amorais ou pouco recomendáveis para parceiros de caminhada existencial.
Como adquirir uma simancolidade consistente, dessas que faz erradicar baboseiras comportamentais e messianismos tresloucados? Uma passada de olhos nas reflexões feitas pelos talentos que já se eternizaram faz um bem danado, corroborando a ideia de muita gente genial: nossos condicionamentos atuais, para cima ou para baixo, são espelhos das reflexões assimiladas nos ontens escritos e até hoje estudados.
Vamos dar uns exemplos, para esclarecer mais apropriadamente. O pensar do notável Albert Camus serve de porta-estandarte: “Para as grandes coisas, são necessários princípios; para as pequenas, basta a misericórdia”. Quantas vezes nos preocupamos com alguns galhinhos de árvore, esquecendo-se do bosque frondoso pela frente? Quantas vezes ficamos preocupados com os ciscos que caíram nos olhos do vizinho, não prestando atenção ao tijolão enfiado nariz abaixo?
Outra constatação por demais oportuna é de Alexander Pope: “Reconhecer que estamos doentes é metade de nossa cura.” Uma recomendação para os que não assumem suas quedas, contradições e ciclotimias, para não falar nos azedumes que vitimam a paciência dos mais calmos. Para tais enfezadinhos, a recomendação de Aristóteles: “Qualquer um pode zangar-se – isso é fácil. Mas zangar-se com a pessoa certa, na medida certa, na hora certa, pelo motivo certo e da maneira certa – não é fácil”.
Mas a simancolidade se fortifica bastante quando se compreende bem, e na devida conta, o que afirmou Bertolt Brecht, dramaturgo alemão: “O pior analfabeto é o político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, o assaltante e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais“.
Entretanto, todo cuidado com as provocações dos mil-réis mentais. Com eles, o parâmetro tem que ser o de Lao-Tsé: “Reaja inteligentemente mesmo a um tratamento não inteligente.” E nunca se enlodar com debates estéreis, dos que apenas promovem a idiotia pública dos ananicados, dos que, porcos por natureza, adoram receber as pérolas dos mais conscientes, um alerta já retratado nas Sagradas Escrituras (Mt 7,6)
Peço licença, como educador sempre inconcluso, para reproduzir Thiago de Mello, o poeta que descobriu a esperança nos olhos dos alfabetizados, primeiro passo para uma saudável e políticamente correta simancolidade: “Peço licença para terminar / soletrando a canção da rebeldia / que existe nos fonemas da alegria: / canção de amor maior que eu vi crescer / nos olhos do homem que aprendeu a ler“.
No frigir dos ovos, fico com a inesquecível Helen Keller, que nasceu cega, surda e muda, tornando-se uma muito arretada cidadã do mundo: “Quando uma porta se fecha, outra se abre; acontece que olhamos tanto tempo para a porta fechada que deixamos de ver aquela que se abriu.”
Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social