1467 – ALICERCES DA SIMANCALIDADE


Não há termo mais apropriado para enfrentar as intempéries conjunturais provocadas pelas aceleradas mutações do cotidiano planetário, inclusive pandêmicas, que o utilizado por gente cidadanizada nas análises de conjuntura: simancolidade. Nos dicionários, o vocábulo ainda não se encontra registrado cientificamente, muito embora ele já tenha significação bem definida: capacidade de se perceber inoportuno ou inconveniente; sinais despertadores de uma criticidade apta para detectar erros e enganos, grosserias ou comportamentos estratégicos desnecessários; sentimento nobilíssimo de profunda autocrítica, favorecendo um redirecionamento mais condizente com procedimentos nunca nostálgicos ou saudosistas, tampouco amorais, sectários ou pouco recomendáveis para parceiros empreendedores de caminhadas terrestres.

A questão mais debatida nas rodas críticas é: Como adquirir uma simancalidade consistente, dessas que faz erradicar baboseiras comportamentais e messianismos tresloucados? Uma passada de olhos nas reflexões feitas pelos talentos que já se eternizaram faz um bem danado, corroborando a ideia de muita gente talentosa: nossos atuais condicionamentos simancólicos, para cima ou para baixo, serão   espelhos das reflexões assimiladas nos ontens estudados sob atenções múltiplas, de modo preponderante nas áreas externas das instituições de ensino superior.

Vamos dar alguns exemplos, para esclarecer mais apropriadamente aquelas mentes que se distanciaram do cotidiano reflexivo, binoculizador. O pensar do notável Albert Camus serve de porta-estandarte: “Para as grandes coisas, são necessários princípios; para as pequenas, basta a misericórdia”. Quantas vezes nos preocupamos com alguns galhinhos de árvore, esquecendo-se do bosque frondoso que pela frente nos desafia? Quantas vezes ficamos preocupados com os ciscos que caíram nos olhos do vizinho, não prestando atenção no tijolão enfiado acima do nosso nariz?

Outra constatação por demais oportuna é de Alexander Pope: Reconhecer que estamos doentes é metade de nossa cura.” Uma recomendação para os que não assumem suas quedas, contradições e ciclotimias, para não falar nos azedumes que vitimam a paciência dos mais calmos. Para tais enfezadinhos, a recomendação é de Aristóteles: “Qualquer um pode zangar-se – isso é fácil. Mas zangar-se com a pessoa certa, na medida certa, na hora certa, pelo motivo certo e da maneira certa – não é fácil”. 

Mas a simancalidade se fortifica bastante quando se compreende bem, e na devida conta, o que afirmou Bertolt Brecht, dramaturgo alemão: “O pior analfabeto é o político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, o assaltante e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais“.

Entretanto, mil e um cuidado com as provocações dos mil-réis mentais. Com eles, o parâmetro tem que ser o de Lao-Tsé: “Reaja inteligentemente mesmo a um tratamento não inteligente.” E nunca se enlodar com debates estéreis, dos que apenas promovem a idiotia pública dos ananicados, dos que, porcos por natureza, adoram receber as pérolas dos mais conscientes, um alerta já retratado nas Sagradas Escrituras (Mt 7,6) 

Peço licença, como educador sempre inconcluso, para reproduzir Thiago de Mello, o poeta que descobriu a esperança nos olhos dos alfabetizados, o primeiro passo para uma saudável e políticamente correta simancalidade: “Peço licença para terminar / soletrando a canção da rebeldia / que existe nos fonemas da alegria: / canção de amor maior que eu vi crescer / nos olhos do homem que aprendeu a ler“.

No frigir dos ovos, fico com a inesquecível Helen Keller, que nasceu cega, surda e muda, tornando-se uma muito arretada cidadã do mundo, uma escritora de talento: “Quando uma porta se fecha, outra se abre; acontece que olhamos tanto tempo para a porta fechada que deixamos de ver aquela que se abriu.”

Apliemos diariamente nossa simancolidade, percebendo como a bem-aventuranças do Senhor repousam diariamente sobre nossas mãos, favorecendo uma mente treinada que jamais se deixará macaquear diante de uma elite metida a ser o “O” de borogodó. 


Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social