1459 – REFLEXÕES PARA UMA PÓS PANDEMIA


Na minha caixa postal eletrônica, recebo uma cutucada em forma de encarecida solicitação: “quais os traques, truques e bobos que mais incomodam o seu cotidiano de cidadão brasileiro” Num PS, a oferta de algumas pistas definitórias: traques – problemas que deveriam estar solucionados há décadas; truques – promessas fajutas que deveriam ser exemplarmente rejeitadas; bobos – pessoas e instituições, autores e atores responsáveis por inúmeras merdices cometidas. Enviei a seguinte reposta, pedindo vênia para transcrevê-la neste espaço semanal:

“Caríssima internauta LMT: A obra-prima O Ovo da Serpente, do cineasta Ingmar Bergman salta-me aos olhos a cada idiotice tornada pública nos últimos tempos. As mais recentes, sem obedecer qualquer classificação:

–  Uma campanha publicitária de um carro que deveria ser renegada;

– A adoção do homeschooling num país em cujas inúmeras residências não têm alimentação suficiente, nem os responsáveis possuem uma escolaridade mínima;

–  A atual criatividade mínima demonstrada pelo segmento político brasileiro, consequência direta da alienação eleitoral;

– O covarde assassinato de autoridade paulista, sequela direta das eternas e demagógicas discussões acerca do sistema penitenciário;

– O ceticismo assustador da grande maioria dos corpos docentes, discentes e administrativos do ensino superior brasileiro;

– A realidade de mentirinha das idióticas pegadinhas televisivas;

– Os programas das até outro dia televisões ditas educativas;

– A nova moeda ibopística chamada meninos de rua, de onde todo mundo quer deles retirar seu quociente eleitoral;

– O receio pusilânime do Congresso Nacional em punir os bandidões eleitos e reeleitos nas últimas eleições;

– O astronômico superavit obtido pelas instituições financeiras brasileiras;

– O crescente sentimento de impotência de uma classe média hedonista, contempladora do próprio umbigo e agarrada a um só-Jesus-salva alienante e irresponsável;

– A dificuldade burocrática de fazer retornar aos cofres públicos os muitos milhões de dólares solapados por salafrários de paletó e gravata, muitos deles ainda entricheirados em equipes de gente graúda;

– Um sindicalismo sem poderes nem resultados, hoje buscando seus quinze minutos de fama em postos nada executivos;

– O moralismo arroteiro dos adeptos do “façam o que mando, não façam o que fiz”;

– Um “ficar” tornando-se mais praticado que o “amar”, este sendo cada vez menos conjugado;

– O quase orgasmo dos noticiários dos telejornais em enumerar os minutos de uma guerra sádica e inconsequente, briguinha caseira de dois alucinados;

– O quase generalizado deboche pelo belo, correto, digno, sólido e generoso;

– Um grotesco noticiário quantitativista, onde as alterações, absolutas e percentuais, são divulgadas como se fossem insumos sobrevivenciais do interesse da maioria. Um abraço arretadamente nordestino”.

Creio que a iniciativa tomada pela internauta tem um propósito nobilitante: o de ampliar a auto-estima do brasileiro, favorecendo a consolidação do binômio criatividade x criticidade, de muita utilidade numa sociedade que não deve tornar-se escrava de grotescas influências tecnológicas  imbecilizantes. Tampouco de novelhas apresentadas com carinhas de anjo.

A conjuntura está se desmanchando no ar o que até agora parecia permanecer em estado quase sólido, da Estação Finlândia apenas resultando nostalgias, incivilidades, lenga-lengas desmotivadores, assembleísmos grotescos e uma disputa pelo poder sem qualquer propositividade planejatória, como se ainda não existisse um contexto social emergente, de índole salvacionista, mesmo que ainda pouco democratizadora. Um contexto assombradiço para os que nunca esqueceram as cenas do colossal filme do Ingmar Bergman, seguramente um filme-despertador, conscientizador por excelência.

Como diz a TV, vale a pena ver de novo o notável filme do Bergman, preparando seu título de eleitor para um sufrágio consciente nas eleições próximas de 2022, quando se espera renovar o Congresso Nacional, definitivamente sem mais cretinices nem silveiragens.


Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social