1455 – LER MAIS, PARA EDUCAR MENTE E CORAÇÃO
Na minha caixa postal eletrônica, uma cutucada em forma de encarecida solicitação: “quais os traques, truques e bobos que mais incomodam o seu cotidiano de cidadão brasileiro?” Num PS, a oferta de algumas pistas definitórias: traques – problemas que deveriam estar solucionados há décadas; truques – “sabedorias” que deveriam ser exemplarmente rejeitadas; bobos – pessoas e instituições, autores e atores responsáveis pelas tronchuras cometidas. Enviei a seguinte reposta, pedindo vênia para transcrevê-la neste espaço semanal:
“Caríssima internauta: A obra-prima O Ovo da Serpente, do cineasta Ingmar Bergman salta-me aos olhos a cada idiotice tornada pública nos últimos tempos. As mais recentes, sem obedecer a classificação proposta: a publicidade do copo de cerveja que renega o esforço da avó velhinha em caminhar até o telefone, logo num início da Campanha da Fraternidade da CNBB, sobre o respeito que se deve ter para com os idosos; a intérprete televisiva que exige dos pais afrouxados a expulsão dos avós de casa, depois de ter surrupiado um dinheiro do avô; a criatividade mínima demonstrada pelo atual segmento político brasileiro, consequência direta da alienação conjuntural; o covarde assassinado de um magistrado, sequela direta das eternas e demagógicas discussões acerca do sistema penitenciário; o ceticismo assustador da grande maioria dos corpos docentes, discentes e administrativos do ensino superior brasileiro; a realidade de mentirinha das idióticas pegadinhas televisivas; os programas de auditório das até outro dia boas televisões educativas; a nova moeda ibopística chamada vacina, de onde todo mundo quer dela retirar seu quociente eleitoral; o receio pusilânime do Congresso Nacional em punir os bandidões eleitos e reeleitos nas últimas eleições; o astronômico superavit obtido pelas instituições financeiras; o crescente sentimento de impotência de uma classe média hedonista, contempladora do próprio umbigo e agarrada a um só-Jesus-salva alienante e irresponsável; a dificuldade burocrática de fazer retornar aos cofres públicos os milhões de dólares solapados por salafrários de paletó e gravata, muitos entricheirados em equipes de gente graúda; um sindicalismo sem poder nem resultados, hoje buscando seus quinze minutos de fama em postos executivos; o moralismo arroteiro dos adeptos do “façam o que mando, não façam o que fiz”; o “ficar” tornando-se mais praticado que o “amar”, este sendo cada vez menos conjugado; o quase orgasmo noticioso dos tele-jornais em enumerar os minutos de uma guerra sádica e inconsequente, briguinha caseira de dois alucinados poderes republicanos; o quase generalizado deboche pelo belo, correto, digno, sólido e generoso; e um grotesco noticiário quantitativista, onde as alterações, absolutas e percentuais, são divulgadas como se fossem insumos estratégicos do interesse da maioria. Um abraço arretadamente nordestino”.
Creio que a iniciativa tomada pela internauta tem um propósito nobilitante: o de ampliar a auto-estima do brasileiro, favorecendo a consolidação do binômio criatividade x criticidade, de sempre utilidade numa sociedade que não deve tornar-se escrava de grotescas influências comunicacionais imbecilizantes. Tampouco vaquinha de presépio.
A conjuntura está se desmanchando no ar o que até agora permanecia em estado mais sólido, da Estação Finlândia apenas resultando nostalgias, incivilidades, lenga-lengas desmotivadores, assembleísmos grotescos e uma disputa pelo poder sem qualquer propositividade, como se ainda não existisse um contexto social emergente, de índole salvacionista, ainda que minimamente democratizante. Um contexto mundial assombradiço para os que nunca esqueceram as cenas do colossal filme do Ingmar Bergman, seguramente um filme-despertador por derradeiro.
Como diz um programa de TV, vale a pena ver de novo o filme do Ingmar Bergman.
Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social