1453 – TRAQUES, TRUQUES E BOBOS


Na minha caixa postal eletrônica, uma cutucada em forma de encarecida solicitação: “quais os traques, truques e bobos que mais incomodam o seu cotidiano de cidadão brasileiro?” Num PS, a oferta de algumas pistas definitórias: traques – problemas que deveriam estar solucionados há décadas; truques – “sabidorias” que deveriam ser exemplarmente rejeitadas; bobos – pessoas e instituições, autores, atores e gente metida a séria  todos  responsáveis por tronchuras escritas, faladas e televisadas cometidas. Enviei a seguinte reposta, pedindo vênia para transcrevê-la neste espaço semanal:

“Caríssima internauta Liana: A obra-prima O Ovo da Serpente, do cineasta Ingmar Bergman salta-me aos olhos a cada idiotice tornada pública nos últimos tempos. As mais recentes, sem obedecer a ordem a seguir: a publicidade do copo de cerveja que renega o esforço da avó velhinha em caminhar até o telefone, logo no início da Campanha da Fraternidade da CNBB, sobre o respeito que se deve ter para com os idosos; a intérprete televisiva que exige dos pais afrouxados a expulsão dos avós de casa, depois de ter surrupiado um dinheiro do avô; a atual criatividade mínima demonstrada pelo segmento político brasileiro nas propagandas televisivas, consequência direta de uma baita alienação eleitoral; os covardes assassinatos de crianças pelos pais, sequela direta das eternas e demagógicas discussões estéreis acerca do sistema familiar; o ceticismo assustador da grande maioria dos corpos docentes, discentes e administrativos do ensino superior brasileiro em relação aos amanhãs humanísticos da área; a realidade de mentirinha das idióticas pegadinhas televisivas; os programas de auditório dos até outro dia eventos metidos a educativos; a nova moeda ibopística chamado auxílio família, de onde todo mundo quer dele retirar seu quociente eleitoral; o receio pusilânime do Congresso Nacional em punir os bandidões eleitos e reeleitos nas últimas eleições, hoje portando tonezeleiras eletrônicas de tão bonzinhos que são; o astronômico superavit obtido pelas instituições financeiras; o crescente sentimento de impotência de uma classe média hedonista, contempladora dos próprios umbigos e agarrada a um só-Jesus-salva alienante e irresponsável, mesmo antes uma Semana Santa, onde só se pensa no Carnaval da Sapucaí; a dificuldade burocrática de fazer retornar aos cofres públicos os milhões de dólares solapados por salafrários de paletó e gravata, muitos entricheirados em equipes de gente graúda; um sindicalismo sem poderes nem resultados, hoje buscando seus quinze minutos de fama em postos executivos nulificantes bem pagos; o moralismo arroteiro dos adeptos do “façam o que mando, não façam o que fiz”; o “ficar” tornando-se mais praticado que o “amar”, este sendo cada vez menos vivenciado, sempre enfiante logo no primeiro encontro; o quase masoquismo noticioso dos noticiaristas dos tele-jornais em enumerar os acontecimentos trágicos de uma guerra sádica e inconsequente, briguinha caseira de dois dirigentes muito alucinados e oportunistas; o quase generalizado deboche de animais metidos a políticos pelo belo, correto, digno, sólido e generoso; e um grotesco noticiário quantitativista, onde alterações, absolutas e percentuais, são divulgadas como se fossem insumos estratégicos do interesse existencial da maioria. Um abraço arretadamente nordestino”.

Creio que a iniciativa tomada pela internauta Liana tem um propósito nobilitante: o de ampliar a auto-estima do brasileiro, favorecendo a consolidação do binômio criatividade x criticidade, de muita utilidade numa sociedade que não deve tornar-se escrava de grotescas influências comunicacionais imbecilizantes, tampouco de medíocres propagandas eleitorais narcísicas.

A conjuntura atual mundial está desmanchando no ar o que até agora permanecia em estado sólido,  apenas resultando em nostalgias, incivilidades, barbaridades, depressões, lenga-lengas desmotivadores, assembleísmos grotescos e uma disputa pelo poder sem qualquer propositividade, como se não existisse um contexto social planetário emergente, de índole salvacionista, ainda que pouco sedutor. Um contexto assombradiço para os que nunca esqueceram as cenas do colossal filme do Ingmar Bergman acima citado, seguramente um filme-despertador, conscientizador por derradeiro. 


Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social