1450 – ABESTADOS, POCOTÓS E MAMÃE-FALEI-MERDAS
Neste princípio de ano eleitoral, enodoado pela perspectiva de nova guerra mundial, mais violenta e desestruturadora que as anteriores, alguns gestos e outras tantas falas, explicitadas pelos meios de comunicação, bem que poderiam ser classificadas como de nível pocotó. Uma referência à letra de música que é, hoje, símbolo da mediocridade existencial ou explicitação de um processo estimulado pela inteligência dos reacionários para me(r)diocrizar a nação brasileira.
A tal música, cantada por um cantor de nome artístico Lacraia, possui uma coreografia atrelada ao setor anal dos dançantes, substituta que é da dança da garrafa e da dança da cadela. Todas elas patrocinadas por emissoras que se balizam pelos índices de audiência do populacho, como se não tivessem um mínimo de responsabilidade social sobre a formação infanto-juvenil. Salvo se estão propositadamente estimulando a desacreditação do todo nacional, para mais rapidamente desmoralizará uma futura equipe presidencial que buscará reerguer a imagem do país no cenário da nações civilizadas.
Aproveitei os dias da folia momesca, no Portal de Gravatá, agreste pernambucano, para reler duas atividades nada relacionadas: aplaudir o Carnaval de Olinda – tido e havido, este ano, como o mais autêntico e animado carnaval do Brasil, para alegria da prefeita Luciana Santos – e reler O HOMEM MEDÍOCRE, consagrado trabalho de José Ingenieros, argentino notável falecido na década de vinte do século passado.
O livro é um ensaio dirigido aos jovens, propondo uma tarefa nobre: estigmatizar a rotina, a hipocrisia e o servilismo, três grandes virus que desenobrecem a vida de qualquer um. E a orelha do livro já traz sadia advertência: “É rigorosamente verdadeiro que os sujeitos mais depreciáveis são justamente os pregadores da moral, raramente ajustando o próprio comportamento à prodigalidade de suas palavras.” Muito diferentemente de Ingenieros, que sabia bem renunciar a costumes e engajamentos considerados por ele perniciosos e que escrevia sem ruborizar-se, diferentemente dos sepulcros caiados denunciados pelo Homão da Galileia, nosso Irmão Libertador. Sempre auditores dos arqueiros mínimos nos olhos dos vizinhos, pouco se lixando para as traves enfiadas nos seus próprios olhos.
No ensaio tornado público pela Juruá Editora, o autor divide os seres humanos em três categorias: inferior, medíocre e superior. O inferior possui uma personalidade não desenvolvida, vivendo abaixo da moral e da cultura dominantes. O superior é original e imaginativo, pensa bem melhor do que o meio em que vive e pode sobrepor ideais próprios às rotinas dos demais.
Já o ser humano medíocre é imitativo por excelência, plenamente adaptado para viver em rebanho, a refletir rotinas burocratizadas, com preconceitos e dogmatismos para sua domesticidade. Incapaz de concretizar um ideário, pensa pelas cabeças dos demais, encontrando-se fora dele o talento, a dignidade e a virtude. Os medíocres são “cegos para as auroras, ignorando a quimera dos artistas, o sonho dos sábios e as paixões dos apóstolos”.
O cartão de visita dos medíocres é a sua vulgaridade. Admiradores de um utilitarismo egoísta, imediatista, miúdo e mesquinho, ignoram que as grandezas do espírito exigem a cumplicidade do coração, posto que “o homem sem ideais faz da arte um ofício; da ciência, um comércio; da filosofia, um instrumento; da virtude, uma empresa; da caridade, uma festa; do prazer, um sensualismo”. E a consequência não poderia ser outra: “a vulgaridade transforma o amor à vida em pusilanimidade, a prudência em covardia, o orgulho em vaidade, o respeito em servilismo”.
Não recomendaria a leitura do ensaio de José Ingenieros aos mediocres. Eles certamente não o entenderiam, posto que dotados de portentosa indigência intelectual, carecendo de bom gosto, toda leitura para eles produzindo os efeitos de um lento envenenamento.
O homem medíocre nada assume. Originalidade causa-lhe calafrios. Como não aprecia decidir, remete as alternativas para uma assembleia chamada de coletivo, onde os seus esclarecimentos para o andamento dos trabalhos tornam-se dispensáveis, posto que sensaborões e nada elucidativos.
O medíocre carrega uma característica: a inveja. Analisa José Ingenieros: “se possui a intenção de praticar o bem, equivoca-se até chegar ao assassinato: poder-se-ia dizer que se trata de um cirurgião míope, predestinado a ferir os órgãos vitais e conservar a víscera cancerosa”.
Um poeta, Joaquim Maria Batrina, é lembrado no livro O Homem Medíocre, quando analisa a incapacidade do dirigente peba em diferenciar inveja e emulação. Eis os versos: “A inveja e a emulação / parentes dizem que são; / embora em tudo diferentes, / finalmente também são parentes, / o diamante e o carvão.”
Dante, na Divina Comédia, considerou os invejosos indignos até do inferno. No entanto, ele em muito ampliaria as dependências da capetania (terras do Capeta) para os medíocres, aqueles que não vislumbram oportunidades sadias, despreparados sempre para funções socialmente responsáveis.
Como já proclamava Bertrand Russell, “o senso de realidade é vital na lógica”. Um lema oportuno para quem chega com ares de ferrabrás, nada mais sendo que raivosa eguinha pocotó.
Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social