1424 – O PRAZER DOS INTERNAUTAS


No atual contexto civilizatório, a dificuldade de discernir entre o complexo e o confuso está provocando a ampliação de patologias individualistas, vitimando-se a individualidade necessária, a convivialidade prazenteira, a sexualidade de mão dupla, a criticidade e a auto-criticidade, além de nulificar a percepção de se saber ser superior ou subordinado, a depender das circunstâncias e das regras estabelecidas. E o refúgio é na internautalidade, na condição de se tornar um navegador solitário, fingida ou nobremente solidário pelas múltiplas infovias de um mundo internético em contínua expansão geométrica, com as exceções que ratificam a regra geral. Um modo inconscientemente irresponsável de “lavar as mãos” diante dos múltiplos e desagregadores cenários sociais. E de também ser dono de seu próprio nariz, onanisticamente sem parceria, bem situado com todo o restante, independentemente de sexo, cor, idade, nacionalidade, religião, vício ou tara. Parece tudo conhecer, para aplicar nas relações internáuticas, o pensar de Álvaro de Campos, heterônimo famoso do Fernando Pessoa já citado, para quem “exprimir-se é dizer o que se não sente.

Uma questão levantada pela pensadora Hannah Arendt – A conquista do espaço pelo homem aumentou ou diminuiu sua estatura? -, efetivada em 1963, num Simpósio sobre o Espaço, pode ser plenamente contextualizada hoje, neste novo século: A conquista do espaço eletrônico pela nova geração aumentou ou diminuiu sua estatura? Uma indagação que está a merecer uma resposta recheada de bom senso, a ser explicitada numa linguagem cotidiana, em que se deve levar na mais alta conta os diferentes níveis civilizatórios do momento presente. A maioria deles amalgamada por uma hipócrita cultura de fingimento, que a nada conduz senão a um cenário social onde alguns imaginam estar e outros sabidamente estão, tudo se relacionando num nível aparentemente de todos, cinicamente igualitário, perversamente democrático.

Algumas personalidades contemporâneas, entretanto, símbolos emblemáticos de gerações e níveis culturais diferenciados, parecem desejar reforçar um neo-humanismo vigoroso que lateja nas veias do mundo, buscando edificar novos moldes civilizatórios, sem nostalgias de espécie alguma. Um hercúleo e sistemático combate ao nível filisteu de uma emergente classe média, que fez da Internet um instrumento de mobilidade social, a consumir cultura como forma de diversão, com a consequente desvalorização dos valores existentes, sem qualquer processo metodológico de reposição. Ei-las:

“Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia” (Lulu Santos)

“Fiquem velhos, mas não envelheçam.” (Capiba, compositor pernambucano) 

O instrumento ideal para os atuais tempos é a bússola, o ícone do ser humano contemporâneo, situado e datado, utilizando, aqui, a expressão feliz do educador Paulo Freire, sempre relembrado. E qual o requisito fundamental para quem vai utilizar tal instrumento norteador? O velho Cervantes já respondia através do universal Dom Quixote de La Mancha: “Quem perde seus bens, perde muito; mas quem perde um amigo, perde muito mais; mas quem perde sua coragem, perde tudo”. E em que nível estará situada a coragem daqueles que, atrás de um vídeo, quixotescamente travam os mais ardentes combates, sexuais inclusive, pouco se importando com os interlocutores, quase todos iguais a ele, com suas máscaras, ilusões, fanfarrices e heterônimos, sob nicknames os mais variados?

Ainda na terceira década do  século XXI, que se iniciou na derrubada do Muro de Berlim, quando o próprio conceito moderno perdeu sua luminosidade atrativa, parte dos seres humanos percebe-se inconclusa, espoliada por ismos os mais diferenciados e desrespeitosos, muito embora, contraditoriamente, uma outra parte sinta-se, diante de uma telinha de computador, dominadora dos setes mares e cinco continentes, senhora de céus e terras, absolutamente dotada de ampla superioridade, imaginária certamente, mas para ela verossímil por excelência.

Neste último agrupamento, significativamente mais avantajado que o primeiro, a internautalidade provoca uma acomodação contagiante, favorecendo o crescimento dos níveis de desconhecimento acerca de deveres e direitos numa sociedade que busca se reestruturar através de sucessivas desestruturações, inclusive pandêmicas. Um desconhecimento que amplifica preconceitos, sedimenta conivências grotescas com o chulo e o vulgar, estimulando uma conveniente convivência com o degenerativo, o repetitivo, o bostálgico e um déjà vu sensaborão por derradeiro.

O contato quase exclusivo dos internautas com uma telinha que se abre real e ilusoriamente para o mundo ratifica, embora sob outro ângulo, o pensar de Ortega y Gasset:  “Como é possível as rãs discutirem sobre mar, se nunca saíram do brejo?”.  E aqui, uma vez mais, Fernando Antônio Nogueira Pessoa, o notabilíssimo Fernando Pessoa, antecipava-se magistralmente, já em 1912: “Por vitalidade de uma nação não se pode entender nem a sua força militar, nem a sua prosperidade comercial, coisas secundárias e por assim dizer físicas nas nações; tem de se entender a sua exuberância de alma, isto é, a sua capacidade de criar, não já simples ciência, o que é restrito e mecânico, mas novos moldes, novas ideias gerais, para o movimento civilizacional a que pertence”

Receio pela descidadanização predatória daqueles que, patologicamente internautas, tornam-se contaminados por um conformismo alienatório, político inclusive, a favorecer irresponsabilidades as mais variadas, de consequências funestas para o próprio regime democrático.  Certa feita foi dito: “A maior tragédia do homem contemporâneo está na sua dominação pela força dos mitos, abdicando de uma soberana capacidade de discernir. … Nós, brasileiros, muitas e muitas vezes oscilamos entre um otimismo ingênuo e uma desesperança que somente beneficiam os reacionários. Otimismo e desesperança que nos fazem esquecer as manhas de um poder invisível que se encontra comodamente instalado em atapetados gabinetes da República, a desarticular propostas de uma estruturação nacional consistente e duradoura, adversária primeira dos interesses oligárquicos”.

Muito oportuno se faz repetir, aqui, o pensar do economista Celso Furtado, um nordestino de muito boa cepa: “Não podemos fugir à evidência de que a sobrevivência humana depende do rumo de nossa civilização, primeira a dotar-se dos meios de autodestruição. Que possamos encarar esse desafio sem nos cegarmos, é indicação de que ainda não fomos privados dos meios de sobrevivência. Mas não podemos desconhecer que é imensa a responsabilidade dos homens chamados a tomar certas decisões políticas no futuro. E somente a cidadania consciente da universalidade dos valores que unem os homens livres pode garantir a justeza das decisões políticas“.

Sem uma eficaz educação cidadã, que favoreça um prazer internáutico, capaz de efetivamente favorecer o entendimento entre povos e nações, colonizados e colonizadores não domesticarão seus instintos primários.

Para  não esmorecer ânimo, realço a minha condição de otimista militante totalmente não-abestalhado. Um ser humano que se considera inconcluso, transnordestino, radicalmente pernambucanizado, seguramente maturado diante da complexidade conjuntural.


Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social