1400 – LIMITES DA TOLERÂNCIA
Outro dia, um não muito distanciado dos atuais, excessivamente pandêmicos, o escritor Umberto Eco, jornalista e professor de semiologia da Universidade de Bolonha, romancista de sucesso e consagrado autor de O Nome da Rosa, também de O Pêndulo de Foucault, foi entrevistado pelo jornal francês Le Monde. Sem papas na língua, denunciou uma estupidificante indiferença moral diante dos extremismos políticos que estão proliferando no mundo inteiro, mormente os de extrema direita. Para ele, as categorias “direita” e “esquerda“, radical dicotomia de quarenta anos atrás, não são mais compatíveis com os atuais instantes históricos, dadas as novas circunstâncias das atuais realidades sociopolíticas, inclusive com as mortes assassina provocada pelo COVID-19.
As últimas duas décadas, aceleradamente evolucionárias, não devem provocar indiferença nos portadores de uma criticidade avessa a dogmatismos, ortodoxias e sectarismos. Distinções esclerosadas costumam “cegar“, obstaculizando reflexões desapaixonadas, desestabilizando emocionalmente os mais jovens, os menos experientes e os alienados de sempre. Ou os que, aturdidos pela velocidade da História, postulam a validade de tudo, nada recusando, nada sendo proibição, as regras morais não mais servindo como balizamentos comportamentais de posicionamentos políticos, táticos e estratégicos. As cafajestadas provocadas por pretensos defensores do povo, apalpando seios de uma colega, numa sessão legislativa de metrópole que já foi bandeirante, são consideradas por grupelhos como manifestações democráticas autênticas e populares, quando não passam de ato de puro atentado à mulher como outro qualquer, doloso por excelência, um desserviço acima de tudo.
Defende Umberto Eco, com a responsabilidade de ser um intelectual de renome internacional, a missão de todo ser-pensante: delinear os limites entre o tolerável e o não-tolerável. Segundo ele, não há “nenhuma verdadeira diferença entre os neonazistas de hoje e os nazistas da geração anterior“. E vai além: “continua sendo a mesma forma de imbecilidade e de atração pelo mal, o mesmo ódio pelos outros e o mesmo desejo de destruição”.
Num país onde a ética comportamental é ridicularizada pelos que apregoam cinicamente saber levar vantagem em tudo, o agir desalienante deve merecer um esforço continuado, redobrado mesmo, para poder discernir entre o que se encontra ultrapassado, obsoleto, e o que é moderno, atualizado, contemporâneo. E, ainda, o que foi considerado errado no passado e o que continua erroneamente sendo feito nos dias de hoje, numa aldeia global de cada vez mais interdependentes contextos comunitários.
Acredito que nós, brasileiros, nordestinos, pernambucanos especialmente, temos uma obrigação cidadã muito acima das agruras do cotidiano: o direito de desconfiar das posturas políticas enganosas e das ruidosas esculhambações sectárias dos messiânicos. O dever de persistir reconstruindo os fatos históricos do nosso ontem sob um prisma revisionista é característica maior de todo historiador cientificamente idôneo, que não se permite resvalar para os negativismos analfabéticos das conjunturas instáveis. O próprio Umberto Eco, em sua memorável entrevista, declara que “a Terra é redonda: não se pode ir à esquerda demais“. E explica: a força de perseguir a ideia mais extrema, a mais provocadora, a mais “inovadora“, acaba por dar a volta e se ver situada na extrema direita. Os exemplos são inúmeros ao nosso derredor.
Numa Semana Santa de muito isolamento social necessário, seguramente aparecerão “milagreiros donos da verdade“, vociferando palavras de ordem, odiando tudo e todos, desancando a moral alheia, arrotando uma “fraseologia pseudo-revolucionária”, num quanto-pior-melhor obsoleto, oportunista, esquizoide, cretino mesmo. Invadir, linchar, arrastar, parar tudo na marra, mesmo que causando os maiores desconfortos, eis alguns dos arroubamentos que poderão ser noticiados daqui pra frente, quando a venezuelização se estabelecer por incompetência dos negacionistas.
Preguiça, ignorância e incompetência, definitivamente não são armas para quem busca transformações sociais consequentes e duradouras. George Orwell costumava dizer que os jovens intelectuais de classe média vão para a esquerda por desemprego, sempre cobrando dos outros aquilo que não podem oferecer. Por aqui, os mais exaltados são alguns fronteiriços, já efetivados nos seus cargos públicos, travestidos de liberais bolsonaristas.
Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social