1388 – UM LIVRO E UMA ENTREVISTA


Creio que seria de muito bom alvitre se a leitura primeira de cada um, em 2021, fosse acerca de uma reflexão consistente sobre os amanhãs planetários após o término da atual pandemia. Sugeriria uma:

Metamorfoses, Emanuele Coccia, Rio de Janeiro, Dantes Editora, 2020, 226 p.

Páginas que revelam porque toda metamorfose é o nosso planeta, enquanto todo ser vivo é apenas uma reciclagem do seu todo, reciclagem de matéria ancestral.

Leitura oportuna para mentes antenadas, culturalmente apetrechadas por lentes binoculizadoras.

Para que todos tenham uma ideia do assunto, apresento abaixo, uma entrevista dada pelo autor à Sonya FaureAnastasia Vécrin, publicada no jornal Libération, em 13-03-2020.

Eis a entrevista.

P. Você que estuda os elos entre os viventes, o que o coronavírus lhe suscita?

R. Todo vírus é inquietante: sua vida é a transformação (por vezes mortal) da vida dos outros. Ele é a demonstração de que a vida que consideramos como nossa não nos pertence: ela pode a qualquer momento tornar-se a vida de outro, mesmo do ser biologicamente e anatomicamente mais remoto, o vírus, que pode instalar-se em nosso corpo e tornar-se seu senhor.

O vírus é a evidência da transformação própria a toda vida, mas como se ele existisse separadamente dos seres vivos: nesse sentido, ele é a exemplificação perfeita do futuro. O futuro é, como um vírus, uma força de desenvolvimento da vida que não nos pertence, ele é uma enfermidade benigna que obriga os indivíduos e as populações a se transformarem, a não se eternizarem. É por isso que o futuro não precisa existir como o passado, isto é, como um monumento: ele é a realidade mais minúscula, e, exatamente como o coronavírus, pode colocar em crise, de uma hora para a outra, um aparato técnico monumental de vários séculos, e a vida de um planeta.

Todo vírus, e este em particular, ensina-nos, assim, a não medir a potência de um ser vivo com base em seu equipamento biológico, cerebral, neuronal. Ele rompe também nosso estranho narcisismo: situados no antropoceno, continuamos a contemplar nossa grandeza, ainda que negativamente, e engrandecemo-nos de nossas potências malignas e destrutivas… “Veja como somos poderosos”. Os vírus recordam-nos que qualquer ser tem força para destruir o presente e estabelecer uma ordem desconhecida e inesperada. O coronavírus mostra, enfim, que a vida zomba das fronteiras, das entidades políticas, das distinções de raça, que ela mistura tudo, une tudo. Isso é bastante libertador.

P. De acordo com você, a metamorfose é o que caracteriza a vida. Como defini-la?

R. A metamorfose é a continuidade entre todos os seres vivos presentes, passados e futuros: todos e todas partilham uma única e mesma vida. Olhe para qualquer ser vivo: ele é obrigatoriamente a transformação da vida que o precedeu e que lhe deu à luz. É a mesma vida anterior, mas capaz de existir em outro lugar e de maneira diferente. Essa continuidade não é apenas a ordem de nascimentos no interior da mesma espécie, mas também o elo entre todas as formas de vida. Segundo Darwin, todas as espécies são a metamorfose de uma espécie precedente: todas as espécies são uma só e mesma vida que se transmite há séculos, de espécie em espécie, de reino em reino, e continuará a fazê-lo para sempre. Cada um de nós é a vida de outros: é isso a metamorfose. Eu sou a vida de minha mãe catapultada para fora de seu corpo e obrigada a viver de modo diferente dela. Mas também sou a vida dos primatas catapultada para fora de sua espécie, sou a vida de um vírus que está em mim e em breve serei a dos vegetais que se alimentarão de meu corpo…

Essa continuidade da vida põe em causa a ideia de nascimento como começo…

O nascimento é percebido como um começo absoluto e como um processo individual, mas é uma passagem que leva uma mesma vida de uma forma a outra, de uma espécie a outra. A vida que somos e que expressamos existia antes de nós, era a vida de nossos pais e aquela de nossos avós, em uma passagem contínua que chega até o início da vida no planeta. É nesta passagem que o indivíduo, a espécie e a Terra comunicam-se e metamorfoseiam-se. É por isso que não há nada mais universal que o nascimento: um carvalho, um fungo, um gato, uma bactéria são todos seres definidos pelo nascimento. Toda criança é um corpo que impôs uma metamorfose à sua matéria original, todo ser nasce em um corpo outro: nascer é não poder separar sua própria história daquela do mundo. O nascimento é nesse sentido um processo de migração da vida, deixando migrar em nós um eu, um sopro vindo d’alhures para outros destinos. Todo parto é uma continuação da tectônica de placas.

Apesar disso, o nascimento é um tabu. Nossa cultura é dominada por homens, que não tiveram a oportunidade de gerar a vida. É sem dúvida por isso que somos obcecados pela morte, ao passo que existe poucas obras, pouca literatura sobre o nascimento, que permanece um mistério.

P. Então a morte não pode ser pensada como o oposto da vida?

R. A morte é um casulo que permite as passagens da vida de uma espécie a outra. Ela abre os corpos definidos por uma vida humana às outras formas de vida, no sentido de que esse corpo, infelizmente – ou felizmente – tornar-se-á a refeição de vermes, de bactérias, de fungos e de que essa vida se transformará em outros corpos.

P. A vida seria a mesma no corpo de um homem, um verme ou uma flor? É estonteante!

R. Mas também é libertador. Aconteça o que acontecer, ela continuará, com ou sem mim, e apesar de meus fracassos. Não se trata apenas de mim, é a vida passada e futura que me atravessa como uma força telúrica. A mim, isso me acalma bastante.

O ato de comer é, segundo você, crucial na metamorfose da vida. Em que medida isso é uma manifestação da universalidade?

A experiência mais regozijante da alimentação é esta: vivemos a mesma vida que o ser que nos alimenta. Esse vínculo de parentesco entre todos os seres vivos está na base da ecologia no século XVIII. A princípio isso causou um grande escândalo, porque implicava a ideia de uma guerra de todos contra todos. Uma maneira de neutralizar essa guerra foi a tradução termodinâmica do fenômeno: comer como uma troca de energia. Mas essa metáfora não diz que comemos apenas o que vive, que não podemos comer o que não vive. A cada vez que comemos, contemplamos a identidade absoluta da vida do comensal e do que se come. Isso não quer dizer apenas que há algo vivo no tomate, mas que há um tomate em mim e, portanto, que o espaço de compartilhamento não é apenas energético, mas também metafísico. O ato de comer é um ato de multiplicação do vivente e de partilha integral da vida. Um ser desaparece, mas não desaparece verdadeiramente, porque permite que uma vida continue seu curso.

P. Existe uma forte crítica ao veganismo e à causa animal?

R. O antiespecismo é válido no sentido de que não há espécies, qualquer espécie é uma colcha de retalhos, uma mistura de outras espécies. Portanto, não se pode considerar que o humano seja mais digno do que os outros, porque a humanidade não existe, é apenas um Frankenstein de outros viventes. É um estado de agregação temporária de uma vida que é a mesma para todos. O humano tem, portanto, o direito de comer tudo, como um vírus tem o direito de destruir tudo. Querendo ultrapassar o antropocentrismo, alguns estenderam os direitos concedidos aos humanos a todos os animais. Mas a questão animal é um problema “humano, demasiado humano”. Criminalizamos um ato, comer, que é a fonte da vida. Os animalistas têm no fundo uma concepção pequeno-burguesa e hiperliberal da vida. Todos devem permanecer com o que lhes diz respeito e não tocar os outros. Uma visão que se baseia na ideia de propriedade da vida e em uma identidade estrita e definida, que é o oposto da ideia de metamorfose que defendo.

P. Se nossa vida, como você escreveu, não tem “nada de individual nem de exclusivo”, como trilhar nosso caminho, e que filosofia criar sem a noção do “eu”?

R. Dizer que a vida não é pessoal não significa dizer que não existe um eu. A vida é necessariamente singular para cada um de nós. Mas o fundamento desse eu não é limitado, a fonte e a forma desse eu não coincidem. O eu é apenas um veículo, algo que transporta sempre outra coisa além dele. Tomemos um exemplo concreto: cada um de nós é filho ou filha de alguém. Eu sou a carne de minha mãe. Eu sou a minha mãe, literalmente, reduplicada e forçada a viver fora do corpo de minha mãe, de forma diferente dela. É essa diferença que faz a individualidade, a singularidade. Isso talvez também explique por que a vida é tão difícil, por que vivemos tão inabilmente: fui programado para viver a vida de minha mãe e não outra. Esse singular nasceu de um acidente. Deve-se estender essas reflexões à nossa humanidade: o que chamamos de espécies é esse conjunto de acidentes que permitem distinguir esses gêmeos siameses que são os homens e os primatas, os vírus e os fungos … Nós distanciamo-nos, traçamos linhas diferentes, mas somos a mesma vida.

P. “Nossa casa está em chamas”, dizemos frequentemente para alertar acerca da mudança climática. Mas, de acordo com você, a casa não é uma imagem eficaz para falar dessa vida em comunidade. Por quê?

R. É mesmo uma imagem perigosa! A ecologia repousa sobre uma base patriarcal de que se deve doravante afastar-se. Pensar a casa como uma ordem ideal e absoluta não tem nada de muito belo. A casa certamente abriga uma coexistência pacífica entre os indivíduos – e ainda assim, nem sempre –, mas ela é, por definição, sobretudo um instrumento de exclusão: eu estou em minha casa e os outros estão fora dela. O próprio termo ecologia repousa sobre essa imagem.

Historicamente, o primeiro a querer pensar a totalidade das espécies vivas sobre a Terra foi Carl von Linné (1707-1778), quando se acreditava que as espécies eram fixas. De fato, em um universo fixista, em que não se estabelece qualquer relação de parentesco entre as espécies, o único ponto de vista possível para abarcar a totalidade do vivente é Deus. Não podemos culpar os naturalistas da época, eles não poderiam formular de outro modo: a concepção de Deus como o pai de todos, levou-os a conceber o mundo como a casa onde esse pai governa, reina. É um imaginário literalmente patriarcal: a casa é um espaço em que cada um tem a sua função, um lugar determinado. A ecologia é a ciência que pensa os seres vivos eternamente designados para o lar. Na realidade, entretanto, mudamos de casa sem cessar, ocupando a vida e os corpos de outros, é por isso que devemos excluir a palavra ecologia em prol do imaginário da cidade. Precisamos agora de um Ibsen[4] da ecologia que denuncie os horrores da família e da vida doméstica!


Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social