1372 – TESOUROS VALIOSOS


O João Silvino da Conceição me disse, em dia ainda não quarentenado, num quiosque CCC (Camarão Com Cerveja) em Maria Farinha, praia gota serena de arretada, que a amizade de alguém é uma das maiores bênçãos que Deus pode dar a um Ser Humano. E leu uma nota de Garth Henrichs como se dele fosse, com uma densidade cênica de fazer gosto, sempre reverenciando o Arão Parnes e o Fernando Sardinha, amigos-irmãos que residem em Brasília, grandezas d’almas pra livro sagrado nenhuma botar defeito. A nota diz o seguinte:
“Eu tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos. Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta necessidade que tenho deles. A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem. Esta mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida. Mas porque não os procuro com assiduidade, não posso lhes dizer o quanto gosto deles. Eles não iriam acreditar! Muitos deles estão lendo esta crônica e não sabem que estão incluídos na sagrada relação de meus amigos. Mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro, embora não declare e não os procure. E às vezes, quando os procuro, noto que eles não tem noção de como me são necessários, de como são indispensáveis ao meu equilíbrio vital, porque eles fazem parte do mundo que eu, tremulamente, construí e se tornaram alicerces do meu encanto pela vida… A gente não faz amigos, reconhece-os”
Segundo Michel de Montaigne, a amizade assinala o mais alto ponto de perfeição da sociedade. E não deve estar relacionada com interesses públicos e privados, jamais em função de partidos ou religiões. E em seus Ensaios, editado pela Martins Fontes de forma esplendorosa, Montaigne, um dos mais talentosos pensadores do século XVI bem que poderia ser leitura obrigatória dos administradores públicos brasileiros, inúmeros deles portadores de homéricas posturas correlatas entre ingenuidade e inexperiência. E que ainda não perceberam as diferenças gritantes entre cargos de confiança e cargos de competência, estes últimos de fundamental importância para o sucesso de todas as gestões que exigem ações a mil por hora, como se tudo pós pandemia fosse um imenso descampado, virgem de iniciativas restauradoras.
E 1878, quando foi publicado pela vez primeira, umas reflexões de Friedrich Nietzsche intituladas Humano, Demasiado Humano, recentemente reeditadas pela Companhia Das Letras, elas dividiam as pessoas que sabem fazer amizades em duas grandes categorias: as escadas e os círculos. Na primeira, se inserem aqueles seres humanos que para cada etapa do seu desenvolvimento encontra os amigos adequados, que raramente se relacionam entre si. Na segunda tipologia se classificam aqueles que possuem amigos de talentos e caracteres sociais os mais diferenciados, onde todos muito bem se relacionam, relevadas as variedades. E Nietzsche é conclusivo: “Em várias pessoas, o dom de ter bons amigos é muito maior que o dom de ser um bom amigo”.
Enumerei uma lista enormes de conhecidos, classificando-os em escadas e círculos, numa primeira tentativa. E me surpreendi. Pois eles eram muito mais círculos que escadas. Amizades que sempre independeram de ideologias, religiões, contas bancárias, gêneros, sobrenomes, idades e locais de residência.
Atualmente, em isolamento social e através de mensagens eletrônicas, tenho trocado papos memoráveis com o Silvino da Conceição, ampliando o meu pequeno embornal cognitivo com as suas sugestões e recomendações, uma das últimas ele extraiu de um livro que está lendo rabiscadamente, intitulado O Cérebro Intuitivo: os processos inconscientes que nos levam a fazer o que fazemos, de John Bargh, Objetiva, 2020, escrito por uma dos maiores especialistas mundiais em cérebro inconsciente. Onde está escrito o que concordamos plenamente: “Ao contrário das experiências pessoais que moldam quem somos no presente, não temos memória do nosso passado. Não temos lembrança de nossa evolução. Ela está oculta de nós, o que é um tanto inquietante, considerando quão profundamente ela influenciou o que pensamos, dizemos e fazemos. Nascemos “equipados de fábrica” com algumas motivações básicas que apareceram durante um período muito diferente na história humana.” Leitura sedutora que estamos debatendo semanalmente, capitulo por capítulo, também consultando amigos mentalmente mais taludos que nós.
Todo santo dia, antes de dormir, me prevenindo dos amigos-da-onça dos derredores, encareço ao meu melhor Amigo o que Dona Lulu, 78 anos, já desencarnada, analfabetíssima, dizia fazer “derna os dezoito anos, antes de pregar no sono”:
SENHOR, CRAREIA MINHA CABEÇA, PARA QUE EU POSSA ENTENDER OS TEUS SINAIS!!


Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social