1350 – UMA TEÓLOGA CULTA E DE MUITA BRAVURA ANALÍTICA


Uma releitura recente, a primeira acontecendo nos anos 90 do século passado, me fez ratificar uma admiração sentida pela bravura de uma mulher, alemã de nascimento, 1927, PhD em Teologia Católica em 1954, a primeira mulher a receber o mais alto grau de uma universidade germânica: UTA RANKE-HEINEMANN.
Por suas análises dotadas de muita bravura interpretativa, ela teve retirada sua licença docente, em 1987 pelas autoridades vaticanas, obtendo no mesmo ano uma cátedra não denominacional de História da Religião, na Universidade de Essen.
Seu texto mais aplaudido entre estudiosos e especialistas em Religião, já em 22ª. edição, no Brasil em 5ª., revista e atualizada, intitula-se

EUNUCOS PELO REINO DE DEUS: IGREJA CATÓLICA E SEXUALIDADE – DE JESUS A BENTO XVI
Rio de Janeiro, Rosa dos Ventos, 2019, 475 p.

Vale a pena reproduzir um comentário de Leonardo Boff, teólogo também perseguido pela Igreja de Roma, homenageando todas as mulheres do planeta, ainda hoje vítimas inclementes de um machismo inculto e ainda animal:
“Uta Ranke-Heinemann é a primeira mulher a conquistar uma cátedra em teologia numa universidade oficial alemã, deposta posteriormente por causa de suas opiniões no campo da exegese e da moral sexual. O presente livro – EUNUCOS PELO REINO DE DEUS – representa, talvez, a investigação mais séria realizada nos últimos anos na teologia ecumênica mundial acerca da forma como a Igreja romano-católica tratou a sexualidade, a contracepção, o prazer e as mulheres. Estamos diante de um trabalho histórico-crítico minucioso, em cima de fontes primárias, abrangendo o tempo imediatamente antes do cristianismo, a história comparada das igrejas cristãs até o tempo de João Paulo II. A perspectiva é a da mulher, vítima do sistema masculino ou celibatário que se apoderou do poder sagrado e o usou quase sempre na ótica antifeminista e machista.
A leitura deste texto produz estarrecimento a qualquer pessoa sensata. É tanto ódio ao sexo, hostilidade ao prazer, difamação das pessoas casadas, suspeita de cada aceno de afetividade e ternura, pecaminização de toda a esfera sexual, por um lado, e exaltação exacerbada do celibato e culto maníaco à virgindade, por outro, que o espírito se nega a crer que isto tenha a ver com Deus e seja a tradução histórica do sonho de Jesus Cristo. É uma moralidade do terror, consequência de mentes sexualmente problemáticas. A doutrina tradicional concernente à sexualidade faz uma separação brutal entre sexualidade e amor. Os celibatários que formularam as doutrinas, especialmente Santo Agostinho e Santo Afonso de Ligório, não mostram a menor idéia da dignidade da mulher e da espiritualidade que se realiza entre esposos que se amam.
A igreja dos celibatários diz um não a praticamente tudo o que se refere à esfera do sexo, do prazer, da contracepção, do jogo difícil da intimidade entre um homem e uma mulher. Ela não escuta as demandas sérias do homem comum. Simplesmente se empenha em impor sua própria ditadura moral sem levar em conta o bem-estar das pessoas casadas.
Por que se chegou a isso? Os fatores são muitos, de procedência extracristã e ligados diretamente às relações internas da Igreja romana-católica. Seguramente, um dos principais é a forma como a Igreja distribui o poder sagrado. Ele ficou reservado à hierarquia, composta somente de homens, de celibatários, no âmbito de um exercício autoritário e totalitário desse poder. Ao redor do poder sagrado, articulado com outros poderes, se organizou a história do cristianismo. Esta acumulação de poder não tolera a fragilidade do amor, não suporta a leveza da ternura e não aguenta a convivência com o diferente, a mulher, os filhos, a força do desejo. O poder precisa controlar tudo, também o campo autônomo das pessoas casadas e da intimidade recôndita das pessoas. Por isso, para todos, mas principalmente para as mulheres, criaram somente medo e escrúpulo. É insensatez um cristão orientar-se pelo ensino da Igreja em questões de moral sexual. Sua teologia não é teologia alguma, porque continuamente abusa do nome de Deus, para legitimar conceitos e preconceitos humanos e sua moralidade não é moralidade porque baseada no terror das conciências.
O livro de Ranke-Heinemann é um grito de libertação das conciências cristãs para que voltem à liberdade que Jesus nos conquistou e se libertem da difamação que os celibatários impuseram à sexualidade e do terror à intimidade dos esposos e às relações que produzem prazer-sexualidade e do terror à intimidade dos esposos e às relações que produzem prazer.”
No prefácio à última edição, a explicação indispensável: “O escândalo mundial de casos de pedofilia no clero católico aliado ao fluxo diário de publicações do papa João Paulo II praticamente sempre e em torno do mesmo tema, a hostilidade sexual e a misoginia, tornaram necessária a ampliação deste livro, agora em sua 22ª. edição. … Depois de finalizar a expulsão papal das mulheres, causada pelo celibato da Igreja católica com seu núcleo monossexual, o desejo de João Paulo II era então o de dessexualizar os homossexuais. É por isso que seu novo Catecismo da Igreja Católica, de 1992, ele entoa um hino de três estrofes aos homossexuais castos.”
Até o papa Bento XVI instituiu a delação dos seminários, em 2005, sobre sacerdotes que mantinham parceiros masculinos em segredo. Delações que sempre aconteceram, ainda que por outras razões.
Uma releitura do livro é mais que buscar aquilatar o nível de agravamento de uma situação que chegou recentemente a pressionar o papa Francisco, fazendo-o não estabelecer a ordenação de homens casados para a evangelização da Amazônia.
Os últimos capítulosd do livro – Os séculos XIX e XX: a era do controle da natalidade; O aborto; O onanismo; A homossexualidade; A teologia moral do século XX, Notas sobre mariologia, e Minha grande decepção – estão a exigir uma leitura mais reflexiva diante das acelerações de uma pós-modernidade que está atordoando analistas mais estudiosos, afugentando inúmeros para uma cada vez mais divulgada e aceita espiritualidade sem igrejas. Que seguramente se agigantará após a atual pandemia mundial.


Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social