1335 – REFLEXÃO DE FINAL DE ANO


O escritor Georges Bernanos, francês de inspiração católica, dizia que “nada é mais ridículo do que um velho enrabichado.” E Alceu Amoroso Lima, o extraordinário pensador brasileiro Tristão de Athayde, complementava: “Nada mais contra a natureza das coisas e aos olhos de Deus do que a velhice inconformada com a morte.”
Morremos muitas vezes ao longo da nossa existência: quando um amigo se vai, também diante dos punhais cravados pelos parentes aparentes ou pelas animalidades cometidas pelos amigos de mentirinha, ou ainda quando as arrogâncias egolátricas corroem um já 0bastante debilitado humanismo século XXI.
Ao longo das nossas vidas, diante da inexorabilidade da morte, tomamos quatro atitudes diferentes. Quando crianças, a morte nos é indiferente. Nutrimos por ela uma curiosidade idêntica às demais sentidas diante do imprevisto. Nenhum valor específico lhe atribuímos, posto que ela não provoca qualquer reação mais profunda. Um acidente da vida como outro qualquer. O escuro, quando se é criança, provoca muito mais medo que a própria morte. Para não falar das almas do outro mundo. Brinca-se até de morto como se brinca de bandido ou de mocinho. Ou de professor. Ou de dona de casa, as meninas-da-casa fazendo comidinha para as meninas-visitas, as mais sabidas.
Na adolescência, entretanto, principiamos a pensar na morte. Idealizamos a morte, mitificamos a morte. Começamos a pensar na própria morte. E principiamos a morrer, diante dos primeiros desmoronamentos provocados em nosso castelo-derredor. Mas ainda encaramos a morte como final de uma aventura, sem tropeços nem maldades, apenas coroamento, sem as pedras do caminho. Na juventude, a morte torna-se companheira quase brincante. Conceito romântico, substituindo a indiferença da primeira idade.
A inimizade se inicia na porteira da maturidade. A morte torna-se a maior inimiga, temida, mais analisada filosófica e religiosamente. A indagação de São Paulo inquieta: “Morte, onde está tua vitória?” Túmulo ou túnel, como magistralmente o admirável Pastor Campos costumava dizer em suas pregações. Com crença ou sem ela, a agonia da morte se torna presente e o viver um contínuo e resoluto foco de resistência.
No último quadrante da vida, entretanto, “a mesa está posta e a cama feita”, como nos dizia o poeta Bandeira, que vivia aos trancos e barrancos com a Última Dama. Nessa fase, exige-se muita serenidade, capacidade de rever caminhadas menos felizes, emergindo a convicção de que bem outras seriam algumas das estratégias tomadas se os fatos fossem encarados com a mentalidade de agora.
Creio que a concepção da morte é determinada pela concepção que se faz da vida. Superar a morte, eis o desafio maior dos libertos dos encantamentos supérfluos, das prestimosidades dos lambetas, das pantufas sabichonas, dos burregos tecnocratas que desconhecem os valores de uma sociedade emergente e dos recalcados que se imaginam eternas vítimas, cordeirinhos imolados de um mundo que não os compreende devidamente. Sem falar dos azedos – homens e mulheres – que imaginam sempre estar em ambientes primeiromundistas, reinos encantados se possível, os nativos daqui nada mais sendo que peças fétidas de um contexto ofuscados pelas suas “luminosidades.”
Neste dezembro, recebi uma carta que muito me sensibilizou. Transcrevo-a:
“Caro amigo nordestino: Assim como Martin Luther King, eu também tive um sonho… Sonhei que o presidente Trump, diante da turbulência mundial que anda afetando gregos e troianos, convocava uma coletiva e dizia mais ou menos o seguinte:
‘É com enorme dificuldade que anuncio que não é à toa que tanto ódio tenha se acumulado em todo planeta. O mundo ficou pequeno pelas telecomunicações. Os fatos ficaram acessíveis a todos num piscar de olhos. Os avanços tecnológicos estão garantindo ao ser humano uma capacidade de realização impensável há alguns anos.
Entretanto, todo esse avanço não tem servido para acabar com a miséria, a fome e as doenças mais elementares entre os pobres. Vamos à Lua e aumenta a população sem casa para morar. Produzimos computadores cada vez mais rápidos e cresce o número absoluto de analfabetos no mundo. Desenvolvemos a engenharia genética, desvendamos o genoma humano e, aos milhões, morre-se por falta de saneamento, de doenças gástricas e de fome. Num mundo de muita desesperança, apresentamos uma insultante opulência, vivendo na sociedade do desperdício: cada americano produz 2 kg de lixo por dia; aqui existindo mais de 100 milhões de carros com ar condicionado, bebendo gasolina e poluindo a atmosfera, consumindo mais de 25 % do petróleo produzido em todo o mundo. Cada americano gasta mais de 600 litros de água por dia, enquanto o europeu gasta pouco mais de 200 e o habitante de Madagascar somente menos de 10 litros por dia.
Fomos responsáveis por inúmeras ditaduras sanguinárias. Mais de 500.000 crianças morreram no Iraque pelo cerco comandado por nós e o criminoso bloqueio à Ilha de Cuba já dura décadas. É a nossa política, com nossos aliados, que tem feito crescer o ódio entre judeus e palestinos. São primos e somente a convivência pacífica e respeitosa entre eles trará paz à região.  
O terrorismo não é aceitável! Nem o terror individual, nem o terror de Estado que temos praticado sistematicamente. É mais que hora de mudar! Estou, neste momento, convocando todos os dirigentes das grandes nações, responsáveis, como nós, pela sucessão de erros apontados, para uma reunião semana que vem, quando iremos detalhar as medidas capazes de reverter a situação de injustiça deste nosso mundo. Convoco as nações mais ricas a assumirem conosco as dívidas do Terceiro Mundo, entendendo que devemos, historicamente, muito mais a eles que eles a nós.’
De todos os lados ecoaram prolongados aplausos. Que me fizeram acordar. E me lembrar do nosso querido e sempre amado dom Hélder Câmara. Peço a Deus que nós, brasileiros, nunca sepultemos o ideário do Dom por um mundo sem fome !!
Que 2020 nos proporcione redobrados instantes de reflexão capazes de favorecer um caminhar ainda mais dignamente resoluto na direção da Luz Divina. Sem medo de ser feliz, sob hipótese alguma.
Feliz 2020, irmão querido !!”
__________________________________________
Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social