1328 – PAIXÃO & PENSAMENTO


Muitos de nós já ouviram falar sobre apaixonados casais famosos da humanidade: Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Cleópatra e Marco Antônio, Victor Hugo e Juliene Drouet, Páris e Helena de Tróia. Amores arrebatadores transformados em fatos históricos até hoje narrados sob os mais variados modos de contar.
Entretanto, recentemente, uma nova história de amor foi escrita por uma PhD alemã, nascida em 1944, livre-docente em Aachen, desde 1998 professora de Ciência Política na Universidade de Oldenburg, onde fundou, em 1999, o Centro Hannah Arendt.
O livro intitula-se Hannah Arendt e Martin Heidegger: história de um amor, Antonia Grunenberg, São Paulo, Perspectiva, 2019, 413 p. Numa nota prévia, uma síntese do livro: “No outono de 1924, a jovem Hannah Arendt, natural de Königsberg, chegou à cidade de Marburgo, situada às margens do rio Lahn, acompanhada por um grupo de amigos unidos pelas mesmas aspirações. Ela fora atraída pelo rumor de que ali havia um jovem filósofo e professor com quem se podia aprender a pensar. Hannah era uma estudante sedenta de saber, e ele, um rebelde entre os filósofos. Ela tinha dezoito anos e era um espírito livre, ele tinha 35 e era casado. O que irá uni-los é a paixão do amor e a fascinação pelo pensamento filosófico.”
O livro descreve a trajetória de um amor arriscado, também início de uma caminhada intelectual repleta de momentos de união e crises de afastamento. Em 1927, Heidegger torna-se mundialmente conhecido por seu livro Ser e Tempo, cujo pensamento foi desenvolvido a partir do amor desenvolvido pelo casal. Nessa época, Arendt se volta para o sionismo, oferecendo uma oposição sistemática ao antissemitismo assassino então emergente. O surgimento do nacional-socialismo divide os caminhos do casal: enquanto ela e seus amigos tornam-se fugitivos, Heidegger iria aguardar o fortalecimento no nacional-socialismo e o despertar da nação alemã, intentando um papel de líder no campo educacional, desejo que destruiu seu amor e amizade por muitos mestres, colegas e alunos.
O casal torna-se inimigo, somente 16 anos depois reavindo uma paixão intensa por mais de vinte anos, muito embora interrompida por crises frequentes, apesar das indagações de muitos: Como uma judia foi capaz de se envolver com um homem em vias de abraçar o nazismo? e Como, após a guerra, quando era evidente o abismo que havia entre os dois, ela foi capaz de procurá-lo novamente?
O livro de Grunerberg trata da trajetória de um casal historicamente consagrado, que possuía uma relação onde se encontravam imbricados dois temas: o amor e o pensamento. Diz ainda a Nota Prévia: “O duplo relacionamento de Hannah Arendt e Martin Heidegger, como amantes e como pensadores, é narrado levando-se em conta o pano de fundo do século passado, de suas rupturas, catástrofes e dramas pessoais. E quanto mais a história dos dois se confunde com a do século, tanto mais personagens vão aparecendo.”
O livro narra, inclusive, a amizade de Heidegger com Karl Jaspers, bem como a luta dos dois pela renovação radical da filosofia, onde ela deveria estar mais à altura das questões existenciais do presente. E eles se tornam os mensageiros da filosofia existencialista, a amizade só se rompendo em 1933, posto que Jaspers desprezava os novos senhores do III Reich e o antissemitismo emergente, tornando-se crítico fervoroso do antigo amigo.
Para entender como estarão os protagonistas no final da história, com a desconstrução dos seus estereótipos, basta ler o livro de fio a pavio, atentando para os cenários mundiais que emergiam ao longo do século. No final de uma leitura sedutora, estaremos seguramente com uma enxergância mais acentuada para as acontecências de um século que alterou os eixos do mundo e as concepções do saber viver.
O livro tem o seguinte sumário, iniciado com uma Nota Prévia:
O Mundo Fora dos Eixos
As Vicissitudes da Vida
O Fracasso da Integração Entre Alemães e Judeus nos Anos 1920
Heidegger Absconditus
Ruptura e Recomeço
Amor Mundi ou Pensar o Mundo Após a Catástrofe
Anexos: Cronologia, Fontes e Bibliografia.
Para anotações complementares, Martin Heidegger nasceu em 1889 e desencarnou-se placidamente em 1976, com 87 anos; Hannah Arendt nasceu em 1906 e desencarna em 1975, com 69 anos, de morte súbita.
O livro encanta, desencanta, destrói e reconstrói cenários que fizeram o século passado. Polvilhado da trajetória existencial amorosa de um casal que sabia pensar e seduzir. Lendo-o com atenção e sem preconceitos moralistas, o leitor logo perceberá a razão de ser do primeiro parágrafo do capítulo 1: “O século XX teve início com uma revolução insidiosa na política e na cultura, na arte e na literatura, na indústria, na tecnologia e na ciência. Todo mundo falava de inovações desestabilizadoras.”


Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social