1311 – MONTAIGNE, UM APRENDIZADO ETERNO


Muitos conhecidos meus, alguns amigos de longa data, vivem sem problemas financeiros, profissionalmente contextualizados, embora revelem, vez em quando, em reuniões convivenciais, alguns descontentamentos nada supérfluos. Tecnicamente preparados, distanciados estão de alguns procedimentos basilares indispensáveis para um caminhar psiquicamente mais ajustado às complexidades de um mundo de diferenças absurdamente díspares, onde uma ínfima minoria usufrui da quase totalidade da renda mundial.

Outro dia, nas comemorações de aniversário de uma filha de quinze anos, o Zé Eduardo, financista dos mais conceituados na praça, me pediu a indicação de um livro não-técnico, que o fizesse sair do automatismo existencial que o estava enjaulando nos últimos dez anos, desde seu matrimônio com a Verinha, uma médica de muita sensibilidade e paciência conjugal.

Pedi uns dias para dar uma olhada nos meus alfarrábios e ontem o visitei portando um exemplar de Como Viver ou uma biografia de Montaigne em perspectiva e vinte tentativas de resposta, Sarah Bakewell, Rio de Janeiro, Objetiva, 2012, 399 p., ela ex-curadora de livros antigos na Wellcome Library, atualmente ensinando escrita criativa na City University, também catalogando coleções de livros raros. E pedi ao amigo que seguisse a recomendação de Flaubert: “ler, não para se divertir, como fazem as crianças, ou para ser educado, como fazem os ambiciosos, mas ler para viver.”

Por que escolhi Montaigne, me perguntou o Zé Eduardo. E eu lhe informei o conteúdo da primeira orelha do livro: “excêntrico, preguiçoso, inconsistente e esquecido. Montaigne é o filósofo que quebrou um tabu e falou de si mesmo em público. Mais de quatrocentos anos depois, sua honestidade e seu charme continuam atraindo admiradores.” Que o procuram em busca de si mesmos.

E a orelha vai adiante: “Este livro é uma fonte valiosa de pequenos conselhos: ler muito, mas manter a mente aberta; ser sociável, mas nos reservar um ‘quartinho’ só nosso; observar o mundo de ângulos diferentes, evitando rigidez nas crenças.” Resumindo, uma questão: como equilibrar a necessidade de sentir-se seguro com a necessidade de sentir-se bem psiquicamente?

O livro fornece para a questão Como Viver? os seguintes vinte balizamentos:
1. Não se preocupe com a morte;
2. Preste atenção;
3. Trate de nascer;
4. Leia muito, esqueça quase tudo que lê e raciocine com lentidão;
5. Sobreviva ao amor e às perdas;
6. Recorra a pequenos truques;
7. Questione tudo;
8. Tenha um compartimento privado nos fundos da loja;
9. Seja sociável; viva com os outros;
10. Desperte do sono do hábito;
11. Viva com temperança;
12. Preserve sua humanidade;
13. Faça algo que ninguém nunca tenha feito;
14. Conheça o mundo;
15. Faça um bom trabalho, mas nem tão bom assim;
16. Filosofe só por acaso;
17. Reflita sobre tudo; não se arrependa de nada;
18. Abra mão do controle;
19. Seja comum e imperfeito;
20. Deixe a vida responder por si mesma.

Montaigne nasceu em 28 de fevereiro de 1533, França, eternizando-se em 13 de setembro 1592, vítima de uma crise de amigdalite. Casa-se em 23 de setembro de 1565 com Françoise de La Chassaigne. Os Ensaios tiveram a primeira edição em 1580, a segunda ocorrendo em 1582, quando Montaigne ocupava a prefeitura de Bordeau, sendo reeleito em 1583. Outra edição, a terceira, sairia em 1587, a de 1595, sob batuta de Marie de Gournay, tornando-se referência por três séculos. Em 1662, os Ensaios entraram cavilosamente no Index dos livros proibidos pela Igreja, proibição retirada somente em 1854.

Na introdução Como Viver?, Sara Bakewell assim se manifesta: “O século XXI está cheio de pessoas cheias de si. Meia hora de percurso pelo oceano on-line de blogs, tweets, tubes, spaces, faces, páginas e pods nos defronta com milhares de indivíduos fascinados pela própria personalidade e clamando por atenção. Eles falam de si mesmos, escrevem diários, conversam e postam fotografias de tudo que fazem. Desinibidamente extrovertidos, olham para dentro de si mesmos como nunca antes. À medida que mergulham em sua experiência pessoal, blogueiros e internautas se comunicam com os outros humanos, num verdadeiro festival do ego.” E essa ideia de escrever a seu próprio respeito foi inventada por Michel Eyquem de Montaigne, que soube dar vida à região do Périgord, no sudeste da França, de 1533 a 1592.

Além do livro, fiz uma proposta ao Zé Eduardo: a de ler os Ensaios de Montaigne. E lhe informei sobre a existência de uma edição integral da editora 34, São Paulo, 2016 (1ª. edição), com 1.032 páginas e tradução e notas de Sérgio Milliet, eternizado em 1966. Seguramente, um texto limpo, fluente, livre das amarrações acadêmicas. Para consolidar um viver integralmente recompensado.

Um texto que há muito está a merecer novos interesses da Universidade Brasileira ainda muito distanciada de um humanismo mínimo indispensável. Um livro para fecundas reflexões sobre nós próprios, sem egolatrias perversas.


Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social