1302 – BODOCADAS LETAIS
Nos momentos preliminares de uma reunião doutrinária, agrupados oito com o objetivo de examinar as linhas mestras de um planejamento semestral, o assunto descambou para os níveis futricais de uma determinada instituição, considerada na área externa como de razoável capacidade organizacional.
Para os presentes, atenção especial foi direcionada aos avaliadores dos que se encontravam rotulados de médiuns, subordinados aos mais diferenciados comentários, cuja lista foi transmitida ao muito amado Chico Xavier pelo Espírito Irmão X, um poeta, contista, crítico, cronista e membro da Academia Brasileira de Letras, autor de mais 40 títulos literários, além de múltiplos artigos em jornais e revistas, que em vida se assinava Humberto de Campos, cuja primeira obra espiritual intitulou-se Crônicas de além túmulo, publicada em 1937, de sucesso extraordinário, consagrador por derradeiro.
O livro do Irmão X agora examinado pelo grupo, Estante da Vida, foi edição FEB pela vez primeira em 31 de março de 1969, em Uberaba, homenageando o primeiro centenário da desencarnação de Allan Kardec, graças ao empenho generoso do saudoso Chico Xavier, uma personalidade profundamente caridosa, sempre dedicada ao auxílio dos mais necessitados, que o tornou indicado por mais de dez milhões de pessoas ao Prêmio Nobel da Paz 1981, em 2012 sendo eleito “O maior brasileiro de todos os tempos”, em iniciativa efetivada pelo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT).
As opiniões dos “sempre inconformados” são as mais diversas. O Irmão X listou algumas: “é um velho prematuro, sem a chama do ideal”; “é um temperamento perigoso, entregue à chocarrice”; “é explosivo, dado à violência”; “é um burro que não sabe falar, senão recorrendo a notas alheias”; “é um preguiçoso, sem qualquer atenção para o estudo”; “é um covarde, não enfrenta a responsabilidade diante do povo”; “é um manequim da vaidade, manobrado por agentes das trevas”; “é mole demais, sem qualquer fibra moral para os testemunhos de fé”; “é um obsidiado, entregue à mistificação”; “é vagabundo, nada quer com o trabalho”; “é revolucionário, deve ser vigiado”.
Numa segunda reunião, presente estava cópia de mensagem recebida em BH por médium mineiro amigo fraterno de longa data de um dos nossos: “O Senhor mandou dizer-te que, em nomeando cada um na obra da redenção, assim o fez porque confiava em seu amor para com os irmãos da família humana, e que por isso mesmo não solicitou o inventário das críticas feitas, recomendando tão somente servir e trabalhar”.
Do grupo emergiu então lições magistrais, dividindo-se a espécie humana, diante dos seus múltiplos relacionamentos convivenciais, em duas grandes categorias. De um lado, os que gostam da folia, da prosa inteligentemente alegre, das pegadinhas pra inglês ver, da fofoca do bem, das presepadas que apenas realçam situações engraçadas sem qualquer consequência danosa. Do outro se situam os latrineiros, aqueles que praticam as mais diferenciadas fuxicarias, as piores se tornando quando explicitadas muito cinicamente pelos que se revestem de feições descaradamente cândidas.
O João Gaspar Simões, biógrafo maior do poetíssimo Fernando Pessoa, orgulho do mundo português, costumava dizer que as pessoas se deparam, a cada instante, com uns tipos reservados porque não dizem tudo, de outras que fantasiam quando falam demais, existindo ainda aquelas que ostentam saber que mais ninguém sabe, cinicamente travestidas de bem informadas. Na última categoria declinada pelo Simões se enquandram os fofoqueiros, os mentalmente ananicados.
Tenhamos um medo danado dos fuxicosos. E dos boateiros idem. Como profissional que também lida com Comunicação, conheço alguma coisa sobre o assunto, a partir da interessante leitura de um livro de Jean-Noël Kapferer denominado Boatos O Meio de Comunicação Mais Velho do Mundo, editado pela Publicações Europa-América, em 1987. Nele se pode verificar como os boatos obedecem a uma lógica cujas engrenagens somente se desmontam quando identificadas como nascem, de onde partem, por que aparecem num determinado instante em determinada localidade, inclusive internética.
Segundo Kapferer, “o boato é a primeira etapa do recalcamento, um escoamento da agressividade recalcada”. A vida vazia, a convivialidade rotineira, a ausência de uma afetividade comprometida com um amanhã mais venturoso, a nostalgia de passados vivenciados no bem-bom, os rebaixamentos de níveis sociais, os desconfortos provocados pela ausência de refrigerações cognitivas eficazes e a vontade de ficar sempre na faixa adolescente, além da debilidade do caráter, são excelentes condimentos na formação de um fuxicoso. Kapferer, no seu tratado, elucida com maestria: “Para o boateiro, é preciso dizer qualquer coisa quando se fala com amigos, parentes ou vizinhos. Existe um vazio a preencher. Falar exclusivamente de si tornar-se-ia rapidamente cansativo. A conversa ficaria ameaçada pelo pior dos perigos: o não ter nada a dizer, a confissão de vacuidade. O boato insere-se maravilhosamente nesse vazio: permite prosseguir a conversa”.
O boateiro se revela mais eficaz quando encontra pela frente pessoas frágeis, que dele necessitam para ampliar a pretensa qualidade dos seus círculos de amizade. E todo boateiro conhece bem o seu rebanho, canalizando suas futriquices sempre travestido de cordeirinho estuprado por gente malvada.
Tenho muita comiseração pelos mexeriqueiros, os que alimentam os débeis com algum “vocês sabem da última? “. De muito poucas leituras, não percebem a lucidez da constatação feita por Gabriel Garcia Marquez: “as lembranças verdadeiras pareciam fantasmas, enquanto as lembranças falsas eram tão convincentes que substituíam a realidade”.
O boateiro desconhece, porque nanico todo, que “há só um caminho para a vida, que é a vida”, como apregoava Álvaro de Campos, um dos heterônimos do sempre notável Fernando Pessoa. O boateiro não tem vida própria, pois sobrevive da vida dos outros.
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Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social